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Vida e Obra de Bakunin

category brazil/guyana/suriname/fguiana | história do anarquismo | opinião / análise author Tuesday January 17, 2017 19:40author by Felipe Corrêa Report this post to the editors

Introdução ao livro "Revolução e Liberdade: cartas de 1845 a 1875", de M. Bakunin (Hedra, 2010)

Introdução ao livro "Revolução e Liberdade: cartas de 1845 a 1875", de Mikhail Bakunin, publicado pela editora Hedra em 2010.
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“Contar a vida de Bakunin é contar a vida do socialismo
e da revolução na Europa durante mais de 30 anos (1840-1876),
pois ele contribuiu ou participou de todos os
progressos da idéia e dos fatos revolucionários.”
Filippo Turrati



Esta compilação de cartas do revolucionário russo Mikhail Bakunin é uma reedição ampliada do livro Bakunin por Bakunin: cartas, publicado em 1987 pela editora Novos Tempos, com seleção e tradução de Plínio Augusto Coêlho. As 16 cartas que constam na primeira edição foram mantidas e outras 14 foram adicionadas, compondo um todo que enriquece a publicação da editora Hedra e confere a ela certo ineditismo.

Ainda que a maior parte das cartas de Bakunin tenha sido perdida, resta ainda muita coisa. Neste volume, o leitor terá a possibilidade de conhecer boa parte desse material, que retrata um período de 30 anos de sua vida (1845 a 1875), estendendo-se da fase em que Bakunin atinge certo desenvolvimento e reconhecimento intelectual, até praticamente o final de sua vida. Conforme afirmou o historiador Max Nettlau, nessas cartas

“havia sempre vida, movimento, algo novo e tudo isso dá à correspondência de Bakunin uma característica especial: nela encontra-se a elaboração das idéias e sua apresentação em várias formas combinadas, a discussão das possibilidades e dos meios de ação e, portanto, sua concepção das questões políticas e sociais de seu tempo; nela observa-se também sua arte de estudar o caráter de cada um e de, por isso mesmo, fazer da sua ação a mais efetiva possível. Por isso, para conhecer Bakunin verdadeiramente, é necessário ainda levar em conta o que ele escreveu em sua imensa correspondência, às vezes pelas explicações detalhadas, verdadeiros tratados, outras por algumas palavras como epigramas.”[1]

Essa publicação ampliada das cartas de Bakunin é relevante, portanto, para que sua história, e, conseqüentemente, a história dos diversos acontecimentos que a ele estiveram ligados, possa ser conhecida, compreendida e analisada, com base em fontes primárias elaboradas pelo próprio autor.

Infelizmente, muito do que se escreveu, e que ainda se escreve, sobre Bakunin, baseia-se nas posições de seus detratores, em material antigo, ou mesmo em interpretações errôneas sem qualquer base empírica. Foi assim que se afirmou que Bakunin seria um agente russo a serviço do czar, que ele seria impotente e que seu espírito revolucionário não seria mais do que uma frustração em relação a isso, que ele teria um complexo de Édipo que o teria levado a uma paixão pela irmã, ou que ele teria escrito o Catecismo Revolucionário de 1869.

Além disso, pela atribulada vida de Bakunin, diversos escritos sobre ele tendem a enfatizar suas aventuras pessoais, os episódios particulares de sua vida, retratando-o como um espontaneísta, muitas vezes inconseqüente, um idealista, utópico, conferindo menos importância à sua ação revolucionária, à sua capacidade organizativa, discursiva, persuasiva, ao seu materialismo, à sua influência nos mais amplos setores progressistas europeus e, fundamentalmente, à sua capacidade teórica. Mesmos os escritos mais simpáticos tenderam, na maior parte dos casos, a evidenciar um Bakunin que seria fundamentalmente um “homem de ação”, mas não um teórico de substância e fôlego.

Esta compilação insere-se no esforço que vem sendo realizado há anos de retomar e reescrever a história de Bakunin, não a partir daquilo que disseram seus desafetos, daqueles que consideraram somente parte de sua obra, ou das interpretações psicológicas teleológicas sem qualquer base. A publicação de suas obras completas no CD-ROM Bakounine: Ouvres Completes, pelo Instituto de História Social de Amsterdã, em 2000, resultado de praticamente um século de esforços para recuperar os escritos originais de Bakunin, fornece às novas gerações elementos fundamentais para chegarmos a posições mais definitivas e menos distorcidas sobre sua história, já que apresenta a totalidade de seus escritos e cartas. Esse é o caso da recente biografia Bakunin: The Creative Passion [Bakunin: a paixão criativa], escrita por Mark Leier e publicada em 2006 nos EUA pela St. Martin’s Press, considerada por muitos a melhor biografia de Bakunin, fundamentalmente por considerar todos seus originais, incluindo as descobertas mais recentes, suas principais biografias, e apresentar tanto os aspectos de sua vida pessoal como sua teoria e prática desenvolvidas no seio do movimento popular europeu do século XIX.

No Brasil, as traduções de Plínio Augusto Coêlho e as publicações da editora Imaginário / Novos Tempos, realizadas permanentemente desde os anos 1980, já colocam o Brasil entre os principais países na tradução e publicação da obra de Bakunin, ainda que muito esteja por ser feito.

Esta introdução buscará, breve e modestamente, oferecer ao leitor um pano de fundo da teoria e da prática de Bakunin, este que foi, segundo as palavras do historiados G.D.H. Cole, “senão o fundador do anarquismo moderno, pelo menos sua liderança mais sobressalente quando, pela primeira vez, chegou a constituir-se como um movimento internacional organizado”.[2] A introdução foi dividida em três períodos: um primeiro, que vai do nascimento de Bakunin em 1814 até sua prisão em 1849, um segundo, que trata dos anos de prisão (1849-1861), terminando em sua fuga, e um terceiro, que vai da retomada das atividades revolucionárias na Europa, nos fins de 1861, até a sua morte em 1876. Dessa maneira, as cartas deste livro poderão ser entendidas dentro do contexto específico em que foram escritas, possibilitando relacioná-las com os acontecimentos e a conjuntura que envolveram a atuação de Bakunin.


A VOLÚPIA DE DESTRUIR É AO MESMO TEMPO UMA VOLÚPIA CRIADORA

Mikhail Bakunin nasceu em 18 de maio de 1814, na propriedade de seu pai em Premukhino – uma localidade russa na província do Tver, entre Moscou e São Petersburgo. Seu pai, Alexandre Bakunin, era um membro da nobreza russa e havia herdado essa propriedade de seu pai, juntamente com 500 servos; ainda que tivesse características conservadoras, Alexandre era um homem de coração bom, com inclinações humanitárias e liberais. Casou-se aos 40 anos com Varvara Muriaeva, 24 anos mais nova, também da nobreza. Terceiro filho de Alexandre e Varvara, Bakunin passou a infância em Premukhino, foi educado em casa junto com as irmãs, e ingressou aos 14 anos na escola de artilharia de São Petersburgo.

Na escola militar, a disciplina, o autoritarismo, a postura dos outros cadetes e uma punição recebida fizeram com que perdesse o interesse pela carreira no exército e descobrisse seus desejos pela liberdade e a necessidade da vida coletiva. Estudava muito naquele período, e, nem mesmo uma promoção a oficial aos 18 anos o motivou; decidiu abandonar a escola nos fins de 1835.

Foi à Moscou onde, trabalhando como professor de matemática, preparou seu magistrado em filosofia e participou do círculo de Stankevitch, no qual polemizou com Belinsky. O período de estadia em Moscou, que se estendeu até 1840, foi de um trabalho intelectual intenso com muita leitura, debates filosóficos e alguns escritos; apaixonou-se pelo romantismo e pelo idealismo alemão, influenciando-se especialmente por Fichte e Hegel. Sob a influência de Hegel, propôs uma reconciliação com a realidade, rompendo com as idéias puramente abstratas e sustentando que a ação prática e a resistência deveriam existir em relação direta com a teoria. Já em 1838 era um dos principais hegelianos russos e, buscando a continuidade de seu desenvolvimento intelectual, decidiu ir à Alemanha, o que fez em meados de 1840.

Na Alemanha, Bakunin residiu em Berlim de 1840 a 1842, onde fez parte da extrema esquerda hegeliana, revolucionária e atéia, que contava com Feuerbach e Bruno Bauer. A evolução intelectual de Bakunin nesse período se deu, principalmente, pela influência de Ruge, Werder e Schelling. Em outubro de 1842 publicou “A Reação na Alemanha”, que apresenta duas contribuições fundamentais: a primeira, de uma interpretação de Hegel que constituiria as bases de uma transformação revolucionária; a segunda, de uma dialética que, ainda que fundamentada em Hegel, diferencia-se de sua dialética triádica clássica, propondo uma dialética baseada somente em dois elementos, um positivo e outro negativo, cujo resultado seria a criação de um novo positivo, sem relação com o antigo. Uma frase finaliza esse texto, sintetizando suas idéias acerca da dialética e da revolução: “a volúpia de destruir é, ao mesmo tempo, uma volúpia criadora”.

Por razão da repressão, Bakunin foi à Zurique no início de 1843. Nesse período, teve contato pela primeira vez com o comunismo, pelo contato com Weitling, e foi influenciado por Feuerbach. Weitling foi preso e Bakunin denunciado ao governo russo que, em fevereiro de 1844, intimou-o a apresentar-se para retornar à Rússia. Fugindo da justiça russa, foi a Bruxelas, onde fez contato com emigrados poloneses, que lhe falaram da opressão sofrida pelo povo eslavo e protagonizada pela Rússia, Prússia, Áustria e Turquia, o que o interessou e fez com que iniciasse um engajamento na luta antiimperialista do povo eslavo contra seus opressores. Depois dessa breve passagem pela Bélgica, foi a Paris, onde recebeu a notícia de que fugir do governo russo havia lhe custado uma condenação, que previa a perda seus direitos de nobreza, o confisco de bens e a deportação para a Sibéria.

Permaneceu em Paris de 1844 a 1847, vinculando-se a Proudhon, o francês proletário e socialista que havia publicado O que é a Propriedade? em 1840, um livro que fundamentava a crítica socialista do sistema capitalista baseado na propriedade privada. Proudhon, com a publicação dessa e de diversas outras obras, influenciou determinantemente Bakunin com seu socialismo que previa um federalismo autogestionário que, aplicado na economia e na política, colocaria os trabalhadores à frente da gestão de seus próprios assuntos, conciliando a liberdade individual e coletiva, e prevendo uma co-existência da propriedade coletiva com a propriedade individual dos camponeses que, sob a noção de posse, garantiria o fim da exploração do trabalho na cidade e no campo. Ainda em 1844, na busca pela organização e pelo trabalho prático, Bakunin engajou-se definitivamente na luta pela independência dos eslavos, motivado pelo caso dos poloneses, aos quais se aliou, apoiando agitações locais, propondo uma aliança entre o povo russo e polonês contra o imperialismo e em favor da autodeterminação dos povos. Bakunin considerava a libertação nacional como o primeiro passo na luta por uma revolução de bases democráticas, que deveria conduzir a uma república federativa dos países eslavos. Em novembro de 1847, Bakunin discursou na comemoração da insurreição polonesa de 1831, enfatizando essa sua proposta de aliança dos eslavos na luta contra a opressão do governo russo. Aclamado pelos 1500 presentes, o discurso custou-lhe a expulsão da França.

Retornando a Bruxelas, Bakunin reencontrou Marx, quem havia conhecido em 1844. Profundamente diferentes, ainda que fossem egressos do hegelianismo de esquerda, Marx e Bakunin já se desentendiam por questões pessoais e políticas. Além do rompimento entre Marx e Proudhon que certamente contribuía com esse desentendimento, destacam-se, já nesse momento, três pontos de divergência entre Bakunin e Marx: as relações entre teoria e prática, as concepções de dialética e do desenvolvimento histórico. Marx buscava desenvolver uma teoria que dotasse o proletariado de capacidade filosófica, defendia a dialética hegeliana clássica – no esquema tese, antítese e síntese – e, baseando-se em sua concepção materialista, entendia o capitalismo como uma etapa necessária para o alcance do socialismo, o que se poderia chamar de “etapismo”. Bakunin, diferentemente, acreditava que teoria e prática deveriam nutrir-se mutuamente, considerava impossível a conciliação entre tese e antítese – para ele, essa conciliação poderia apontar para o reformismo – e sustentava que a revolução deveria ser buscada imediatamente, nos países mais e menos desenvolvidos.

Em fevereiro de 1848 estourou a revolução em Paris, que se inseriu dentro dos episódios que ficaram conhecidos como a Primavera dos Povos, e Bakunin, sedento por ação, juntou-se ao levante francês, atuando com a extrema esquerda nas barricadas e integrando a milícia de Caussidière. Combatendo por vários dias, Bakunin achava incrível o povo em armas; pregava o comunismo, a igualdade, a libertação dos eslavos, o fim do imperialismo e a revolução permanente. Participou, em junho de 1848, em Praga, do Congresso Geral dos Eslavos, tentando radicalizá-lo e pregando o antiimperialismo. Ainda naquele mês, estourava a chamada Insurreição de Praga, que colocou em lados opostos o povo insurreto e o exército imperial. Bakunin apoderou-se de um fuzil e lançou-se novamente no combate: lutou corajosamente até o último momento, mas, com a derrota dos insurretos, teve que fugir. Encontrou refúgio no principado de Koethen, na Prússia, desenvolvendo suas idéias em um artigo chamado de “Apelo aos Eslavos”, no qual sustenta a possibilidade de uma união dos eslavos contra o imperialismo, direcionando as forças do nacionalismo para a revolução.

Esse período de 1848 a 1849 foi marcado, também, pelos conflitos em torno do “etapismo”, com Marx, mas, especialmente, com Engels, que, atacou o “Apelo” sustentando que a ocupação do México pelos Estados Unidos e a opressão dos eslavos eram necessidades históricas.[3] Esse desacordo, que continuaria ainda por décadas,

“era muito mais do que um estrito debate sobre a natureza da sociedade eslava. Ele refletia diferenças em relação a questões sobre filosofia, natureza da história, estratégia política e experiência pessoal. Bakunin sustentava que a história poderia movimentar-se rapidamente em tempos revolucionários e que a humanidade não tinha que passar pelos estágios econômicos específicos numa ordem exata. [...] Ao passo que Marx e Engels viam a expansão da produção econômica como um ingrediente essencial para a liberdade humana, e assim apoiando as investidas dos EUA sobre o México e da Alemanha sobre os eslavos, Bakunin sustentava que era possível criar sociedades mais livres, independente do nível da economia. Era possível para sociedades menos desenvolvidas aceitar a revolução social e remover esses obstáculos, os sistemas sociais e as estruturas do império, do Estado, da Igreja, dos senhores e do capitalismo, que impediam o povo de controlar suas próprias vidas.”[4]

Bakunin, ainda nos fins de 1848 foi a Praga, voltou a Koethen e foi para Leipzig, na Saxônia, onde chegou no início de 1849, preparando a insurreição da Boêmia e estabelecendo-se em Dresden. Lá estava, quando, nos fins de abril, estourou a insurreição. Durante os episódios em Dresden, nos quais aprofundou suas relações com o músico Richard Wagner, assim que viu que o povo estava disposto a lutar, entregou-se à luta de corpo e alma. “A energia de suas resoluções, sua bravura inquebrantável, sua estatura hercúlea rapidamente despertaram a lenda.”[5] Bakunin foi um dos mais ativos comandantes militares do levante, tornando-se “o verdadeiro chefe militar da insurreição”.[6] Mesmo com a distribuição de armas e munições ao povo, a insurreição perdeu forças em alguns dias. Quando, exausto, descansava em um pequeno hotel em Chemnitz, na Saxônia, Bakunin foi preso em 10 de maio pela burguesia local e levado à prisão de Dresden. Começaria aí a pior fase de sua vida.


A LIBERDADE OU A MORTE

O governo russo foi comunicado da prisão de Bakunin, que aguardou dois meses até sua transferência para a fortaleza de Königstein, o que ocorreu em julho de 1849, prisão na qual passou seis meses. Em janeiro de 1850 foi condenado à pena de morte pelo tribunal da Saxônia, pena que, em junho, foi comutada para prisão perpétua. Foi extraditado para Praga e depois transferido, em março de 1851, para a fortaleza de Olmütz. Nessa fortaleza, passou momento de sofrimentos inigualáveis: foi acorrentado às paredes e assim permaneceu por seis meses seguidos. Em maio foi novamente condenado à morte, dessa vez pelo governo austríaco, pena que também foi comutada para prisão perpétua. Entregue às autoridades russas, Bakunin foi encarcerado na Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo, onde permaneceu de 1851 a março de 1854, no pior lugar da prisão – a fortificação de Aleksei. Dois meses após sua chegada, o conde Orlov, responsável pela fortaleza, visitou Bakunin oferecendo-o uma chance para que se redimisse de seus crimes, escrevendo ao czar Nicolau I um pedido de perdão. Bakunin logo concordou e escreveu, ainda em 1851, sua “Confissão”.

Ainda que com referências formais ao czar, esse texto reflete as convicções políticas de Bakunin e possui uma severa crítica do regime czarista e a proposição de uma série de medidas que julgava necessárias para a Rússia daquele tempo. Ao final da “Confissão”, Bakunin pediu que sua prisão perpétua fosse comutada para trabalhos forçados, colocando todos os suplícios que vinha sofrendo:

“Sou um grande criminoso e não mereço perdão! Isso eu sei, e se me houvesse sido dada a pena capital, eu a haveria aceitado como um castigo merecido e quase com alegria, pois ela teria me libertado de uma existência insuportável, intolerável. [...] Não me deixeis consumir na prisão perpétua! [...] Se os trabalhos mais duros pudessem ser meu destino, os aceitaria com reconhecimento e como uma graça. [...] Mas na reclusão [...] vive-se apesar de tudo e, sem morrer, morre-se dia após dia na inatividade e na angústia. [...]”[7]

Ainda que Bakunin tenha dito estar arrependido de suas idéias e de seus atos revolucionários, sua vida futura demonstrou que isso havia sido dito para que conseguisse a liberdade. O conde e o czar concordaram, em agosto de 1851, que Bakunin era ainda um homem muito perigoso e que não deveria ser libertado. Em março de 1854 Bakunin foi transferido para a prisão de Schlüsselburg, onde ficou até 1857. Em meados de 1854, Bakunin estava devastado, sua condição havia piorado muito e diversas doenças o acometiam: tinha hemorróidas, febres, dores de cabeça, zumbidos no ouvido dificuldades de respirar. Além disso, a dieta da prisão havia lhe causado escorbuto, que lhe provocou chagas no corpo e foi responsável pela perda de todos os seus dentes.

Em 1855, com a morte do czar Nicolau I, Alexandre II assumiu o trono e promoveu uma anistia geral entre os presos políticos. No entanto, a anistia não libertou Bakunin que, em fevereiro de 1857, escreveu uma nova carta ao czar. “Considero-me como um velho, e sinto que já não tenho muito tempo de vida”, escreveu Bakunin, que pedia somente uma coisa: “a liberdade ou a morte”.[8] Nesse mesmo mês, sua prisão foi comutada para uma deportação para a Sibéria, onde passou os próximos quatro anos de sua vida. Essa liberdade, ainda que cerceada, permitiu que Bakunin logo se recuperasse; trabalhou em uma chancelaria e deu aulas de francês, o que lhe permitiu conhecer Antonia K. Kwiatkowska, uma jovem de 17 anos, filha mais velha de um trabalhador polonês da indústria do ouro. Mesmo com a grande diferença de idade, os dois apaixonaram-se e casaram-se em outubro de 1858. Na Sibéria, Bakunin trabalhou também na Companhia Fluvial do Amur, na empresa do negociante de ouro Bernardaki e, nesse contexto, traçou um plano da fuga, que se iniciou em meados de 1861.

Venceu mais de 3000 quilômetros de descida do rio Amur em um barco, de Irkutsk até Nikolaevsk. Embarcou em julho no barco russo Strelok e passou a um clíper americano, indo ao porto da cidade de Olga, de onde navegou rumo à cidade de Hakodate no Japão, lá chegando em meados de agosto. Passou por Yokohama, por San Francisco, nos EUA, e pelo Panamá em outubro, chegando a Nova York em novembro. Permaneceu um mês na região e partiu para Londres, chegando no dia 27 de dezembro de 1861. Em seis meses de fuga, percorreu mais de 30 mil quilômetros. Mas, enfim, estava livre.


A LIBERDADE SEM O SOCIALISMO É O PRIVILÉGIO, A INJUSTIÇA; O SOCIALISMO SEM LIBERDADE É A ESCRAVIDÃO E A BRUTALIDADE

Chegando em Londres ao final de 1861, Bakunin juntou-se a Herzen e Ogarev, participando do periódico Kolokol; no início de 1862, Bakunin publicou “Aos Russos, Poloneses e Todos os Amigos Eslavos” e no meio do ano, “A Causa do Povo: Romanov, Pugatchev ou Pestel?”. No início de 1863 tentou juntar-se à insurreição polonesa, mas não conseguiu. Permaneceu na Suécia até outubro, encontrou-se com Antonia, passou por Londres, Bruxelas, Paris, Genebra, Berna, estabelecendo-se, no início de 1864, na Itália. Nesse período em que esteve na Itália, Bakunin desenvolveu um imenso trabalho de propaganda e organização fundando, ainda em 1864, a Fraternidade Internacional, uma organização política secreta com membros de diversos países que propunha um programa socialista, internacionalista e libertário. Objetivava estimular a revolução, que deveria “ser feita não para o povo, mas pelo povo e nunca obterá êxito se ela não envolver apaixonadamente todas as massas do campo bem como as das cidades”.[9] Dois textos de 1866 constituem as bases programáticas da Fraternidade: “Catecismo Revolucionário” e “Organização”.

Bakunin passou, nos fins de 1864, por Londres, Bruxelas, Paris, Genebra, Berna, Florença e estabeleceu-se em Nápoles, onde viveu de 1865 até setembro de 1867, e depois em Genebra, onde viveu até 1869. Ainda em 1864, nascia, em Londres, fundamentalmente por obra do proletariado francês e inglês, a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que tinha por objetivo organizar o operariado internacionalmente, criando um amplo movimento de massas. Além disso, as crescentes tensões entre a Prússia e a França fizeram com que se articulasse, na Suíça, um Congresso pela Paz, que se realizou em Genebra, em 1867, e criou a Liga da Paz e da Liberdade. Bakunin vinculou-se a este segundo movimento – muito amplo naquele momento, contanto, no Congresso de 1867, com seis mil participantes – expondo pela primeira vez, num discurso, as idéias da Fraternidade, e tentando impulsionar o movimento para o socialismo revolucionário e unifica-lo com a AIT. O discurso de Bakunin foi enriquecido após o Congresso transformando-se no documento “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”, uma proposta de programa para Liga que afirmava: “a liberdade sem o socialismo é o privilégio, a injustiça; e que o socialismo sem liberdade é a escravidão e a brutalidade”.[10]

Em julho de 1868 Bakunin aderiu individualmente à seção da AIT de Genebra. A Internacional havia realizado em 1866, em Genebra, seu primeiro congresso, definindo seus estatutos, e em 1867, seu segundo congresso, em Lausanne, discutindo nove questões que envolviam o proletariado internacional. Em setembro de 1868, realizou o terceiro congresso em Bruxelas, discutindo outras seis questões. Dentre as questões discutidas estava a da propriedade coletiva, que marcou a radicalização da AIT, que acompanhava o crescimento de suas bases e de sua autoridade moral. Logo depois desse congresso, ocorreu o segundo congresso da Liga da Paz e da Liberdade, em Berna. Atraindo uma quantidade muito menor de participantes, o congresso terminou com uma cisão; para Bakunin e outros socialistas, a paz e a liberdade somente viriam com a justiça social e o socialismo, para a maioria, não. Com a rejeição do programa socialista pela maioria, a minoria composta por Bakunin e outros companheiros separou-se da Liga, decidindo juntar-se à AIT. Ainda que conservando os laços da Fraternidade de 1864, os revolucionários entenderam por bem constituir uma outra organização política, pública no entanto, que acabou sendo chamada de Aliança da Democracia Socialista (ADS) e sendo fundada em outubro de 1868, logo após o rompimento com a Liga. Ela iria funcionar como organização pública até 1869 e, depois, como organização secreta.[11] A ADS, tanto a pública quanto a secreta, constituía uma organização política, um tipo de partido, que agrupava membros em torno de um programa político e ideológico, dando corpo ao anarquismo em funcionamento pleno, organizado internacionalmente, com objetivo de impulsionar os movimentos populares. Com a fundação da ADS pública, nos fins de 1868, Bakunin entrou de corpo e alma no movimento operário internacional, decidindo dedicar-se completamente à AIT.

No entanto, o pedido de entrada da ADS na AIT foi negado pelo Conselho Geral, que, com o apoio de Marx, justificou que, tendo as duas organizações os mesmos objetivos, a entrada da ADS poderia desorganizar a Internacional. No entanto, obviamente, isso envolvia as diferenças entre aqueles que ficariam conhecidos como libertários e autoritários. Visando conseguir o ingresso na AIT, a ADS propôs ao Conselho Geral dissolver-se como organização internacional, acabar com seu bureau central e que suas seções na Suíça, na Espanha, na Itália e na França fossem aceitas como seções da AIT, o que foi aprovado pelo Conselho Geral em meados de 1869. Nesse mesmo ano, Bakunin auxiliou na formação de uma nova seção da AIT em Genebra, a Federação Românica, e envolveu-se com duas novas publicações: Progrès e L’Égalité, na qual publicou uma série brilhante de artigos que inclui: “Os Enganadores”, “A Instrução Integral” e “A Política da Internacional”.

O quarto Congresso da AIT, realizado em 1869 na Basiléia, deu ao Conselho Geral o direito de determinar a filiação das seções, declarou-se favorável à abolição da propriedade individual e ao estabelecimento da propriedade coletiva e teve um amplo debate sobre a questão da herança. Se, para os setores marxistas a herança era uma conseqüência da propriedade privada, para os bakuninistas essa conseqüência, posteriormente, poderia transformar-se em causa, posição que terminou vencendo a discussão. Após o congresso, Bakunin prontificou-se a traduzir O Capital de Marx, começando o trabalho em Locarno.

No início de 1870, Serguei Netchaiev voltou a encontrar-se com Bakunin; eles haviam se conhecido em março de 1869. Impressionado pelas mentiras de Netchaiev – que inventou uma história que lhe colocava na posição de um herói revolucionário –, mas também por seu espírito revolucionário e sua energia, Bakunin estimulou-o e ajudou-o, fundamentalmente entre abril e agosto de 1869, a redigir material de propaganda para difusão na Rússia. Dentre esse material destacam-se “Os Princípios da Revolução” e o “Catecismo Revolucionário” – sabe-se hoje que ambos artigos foram escritos por Netchaiev – que sustentam o revolucionário como “um ser completamente imoral, obrigado a cometer qualquer crime, qualquer traição, qualquer baixeza ou engano para realizar a destruição da ordem existente”.[12] O autoritarismo jacobino e maquiavélico de Netchaiev, desprovido de qualquer ética, foi demonstrado em uma série de posições e atitudes: sua concepção vanguardista de organização, sua posição de que os fins justificam quaisquer meios de ação, o assassinato de um membro dissidente de seu próprio grupo, as mentiras e chantagens aplicadas a outros revolucionários, a ameaça de morte ao editor de O Capital – sem o conhecimento de Bakunin – e a utilização do dinheiro do fundo Bahkmetov. Tudo isso fez com que, já em junho de 1870, Bakunin rompesse com Netchaiev.

Bakunin publicou, em março de 1870, “Os Ursos de Berna e o Urso de São Petersburgo” e, em julho, com o começo da Guerra Franco-Prussiana, iniciou a redação de suas “Cartas a um Francês sobre a Crise Atual”, em que afirmou que a solução da guerra estaria na formação de um exército popular que, juntamente com a luta contra a invasão alemã, deveria empreender uma guerra civil, visando chegar à revolução social. Sua idéia era “transformar uma guerra entre Estados em uma guerra civil, para culminar na revolução social”. Bakunin “acreditava que somente uma ampla guerrilha empreendida por todo o povo poderia enfrentar simultaneamente os exércitos tirânicos inimigos e defender a revolução social contra seus inimigos internos”.[13] No entanto, para Bakunin, o processo revolucionário não poderia ser organizado em Paris, que naquele momento defendia-se dos ataques dos inimigos; seriam cidades como Lyon, Marselha e Rouen que deveriam iniciar esse processo. Em setembro de 1870 Bakunin decidiu juntar-se aos revolucionários de Lyon, que haviam proclamado a república; era o momento para a insurreição armada e para a guerra revolucionária. “Bakunin incita à insurreição”, redige uma proclamação defendendo “a abolição do Estado e a federação revolucionária das comunas e conclui-se em favor do apelo ‘Às armas’”.[14] Em Lyon, Bakunin também auxiliou na formação do Comitê da Salvação da França, organizou manifestações públicas e fez parte da tomada do Hotel de Ville, proclamando ali o novo governo provisório. No entanto, com a intervenção da Guarda Nacional, o espaço foi retomado e Bakunin preso. Era o fim da Comuna de Lyon. Bakunin foi rapidamente libertado e voltou à Locarno, na Suíça, passando antes por Marselha.

A onda revolucionária continuava na França e, em março de 1871, estourou a Comuna de Paris contando, desde o início, com o apoio de Bakunin, que via nela uma demonstração prática da capacidade popular, que organizava a luta de baixo para cima, levando a cabo um socialismo que deveria criar um autogoverno do povo, de maneira federalista e acabando com o Estado. Com a derrota da Comuna, uma imensa repressão atingiu todos os setores progressistas europeus, o que impediu a realização de um congresso da AIT naquele ano. O Conselho Geral acabou marcando, por esse contexto, uma conferência privada para setembro de 1871, a realizar-se em Londres. Com participação absolutamente restrita e sem representação, a conferência decidiu que o proletariado deveria utilizar a ação política e não poderia triunfar senão constituindo-se em um partido político; questão que estava em disputa desde a criação da AIT. Independente das intenções do Conselho Geral, essa deliberação certamente racharia a Internacional, visto que essa era a posição de um setor minoritário, com influência nas seções da Inglaterra e da Alemanha; a posição dos setores majoritários, influenciados pelas posições bakuninistas, na Suíça e na Bélgica, mas fundamentalmente na Itália e na Espanha, eram contrárias a tal posição e primavam pela ação direta das massas.

Alguns meses antes da conferência de Londres foi publicada a primeira versão de O Império Cnuto-Germânico e a Revolução Social em que Bakunin afirma suas posições filosóficas, suas críticas ao capitalismo e ao Estado e também sua estratégia de transformação. Esse período de 1871 é um dos mais ricos em relação a suas contribuições teóricas, contando ainda com os escritos como “O Princípio do Estado”, “Três Conferências Feitas aos Operários do Vale de Saint Imier”, “Protestação da Aliança” e “A Teologia Política de Mazzini e a Internacional”.

Um último congresso da AIT realizou-se em Haia, em setembro de 1872. Nele, único em que Marx esteve presente, a tática foi clara: expulsar os adversários anarquistas, e para isso, eram necessárias provas de que eles vinham desrespeitando as resoluções da AIT. Acusado pela existência da ADS e pelos fatos que envolveram Netchaiev, Bakunin foi expulso da Internacional, juntamente com Guillaume. Os delegados restantes aprovaram a transferência do Conselho Geral para Nova York, o que selaria a morte da AIT. Uma semana após o Congresso de Haia, os anarquistas reuniram-se em Saint Imier, na Suíça, e criaram uma outra Internacional, que ficou conhecida como a Internacional Antiautoritária, contando com a participação de Bakunin e Guillaume e declarando-se contra a imposição de um programa político-ideológico às massas e contra o objetivo de conquista do poder político pela classe trabalhadora. Bakunin escreveu neste ano dois textos: “Escrito Contra Marx” e “Carta ao Jornal La Liberté de Bruxelas”, que explicam grande parte das diferenças entre bakuninistas e marxistas no seio da Internacional.

Entender as diferenças que surgiram no seio da AIT, e que dividiram o operariado internacional, como uma mera divergência entre Marx e Bakunin é certamente um equívoco. Se uma comparação entre os dois é sempre útil, é justamente porque ambos incorporaram em si duas diferentes tendências do proletariado internacional, que se forjaram dentro do movimento operário e do socialismo que se desenvolvia naquele momento, afirmando distintos métodos de análise e estratégias. Assim, ambas correntes devem ser reconhecidas como tendências do movimento operário internacional, tendo surgido das mesmas bases e influenciando-se mutuamente – e isso permite afirmar que o anarquismo não nasceu da oposição ao marxismo, mas, proveniente das mesmas raízes, diferenciou-se ao longo do caminho, propondo outra forma de socialismo.

Essas duas tendências tinham similaridades e diferenças e para compreendê-las é possível comparar as posições de Marx e Bakunin que demonstram convergências e divergências: tanto Marx quanto Bakunin eram ateus, pregavam o fim do capitalismo e defendiam a revolução de bases classistas rumo ao socialismo; no entanto, divergiam no método de análise – o que apontava para concepções diferenciadas em relação ao momento, o processo e os sujeitos da revolução – e também na estratégia – fundamentalmente em relação à utilização do Estado como campo de disputa na sociedade capitalista e como meio de garantir e defender a revolução socialista.

As posições sobre o método de análise e a estratégia de Bakunin, no período que vai de meados dos anos 1860 para frente, foi formulada em seus escritos e cartas e pode ser brevemente definida da seguinte forma. O materialismo de Bakunin, ainda que tenha sido influenciado pelo de Marx, recusa o “economicismo”: para ele, haveria uma influência múltipla entre as esferas econômica, política e ideológica/cultural; a econômica, por mais que fosse realmente determinante em muitos casos, em diversos outros casos, seria determinada pelas esferas política e cultural/ideológica, em um movimento dialético que não estabeleceria causas e conseqüências fixas, determinadas a priori. Bakunin identificava a exploração e a dominação existentes na sociedade e sua divisão em classes e, nessa luta de classes, a revolução poderia ser realizada em países mais ou menos desenvolvidos e deveria ser levada a cabo tanto pelo proletariado urbano e industrial, como pelo campesinato e toda a massa de excluídos (o “lumpemproletariado”), em um processo que destruísse o capitalismo e ao mesmo tempo o Estado, divergindo, portanto, das posições “etapistas” e da eleição de um ou outro campo do setor de oprimidos.

Bakunin defendia uma estratégia de mobilização internacional e econômica das massas, organizada em torno das necessidades populares, abarcando dentro de si as mais diversas concepções políticas e religiosas, sem participação parlamentar. Negava o socialismo burguês e afirmava que a educação e a propaganda, sozinhas, possuíam seus limites. Sua idéia era que, durante as lutas populares, no seio das quais deveriam se dar a propaganda e a educação, surgiria no povo a consciência de classe e o próprio desejo pelo socialismo, lutas essas que poderiam até contar com conquistas menores, que melhorariam as condições populares, mas cujo objetivo final seria necessariamente a revolução social, atingida por meio de um processo de violência revolucionária, colocando um fim imediato ao capitalismo e ao Estado, e portanto, sem considerar o socialismo de Estado como período intermediário. A sociedade futura, que deveria tomar corpo no socialismo coletivista, contaria com a expropriação dos meios de produção, com sua gestão coletiva fundamentada no trabalho, com a instrução integral e com o fim da diferenciação entre trabalho intelectual e manual. Proporcionaria a cada pessoa, os frutos completos de seu trabalho realizado, garantindo igualdade e liberdade plenas.

Aos fins de 1872 Bakunin chegou a Locarno, passando antes por Zurique. Nesse momento sofria muito; estava exausto, e sua saúde piorava a cada dia: estava extremamente obeso, tinha crises de asma, um problema na próstata, além de um problema cardíaco, condição que piorou com os ataques de Marx, Engels e Lafargue, que continuavam a onda de acusações e mentiras, conforme comentou Nettlau:

“Marx e Engels, em toda sua maquinação [...] agiam com essa estupeficante falta de honestidade que é característica de todas as suas polêmicas, embasadas em uma documentação insuficiente que, segundo seu hábito, completava por afirmações arbitrárias que seus discípulos consideravam verídicas, quando, de fato, eram apenas deploráveis deformações, erros ou disfarces destituídos de escrúpulos.”[15]

Por esses e outros motivos, Bakunin afirmava, naquele momento, estar cansado e desgostoso com a vida pública e, ainda que publicando Estatismo e Anarquia em 1873, considerava ser hora de uma nova geração tomar o seu lugar nas atividades revolucionárias. Retirou-se da Federação Jurassiana e da Internacional Antiautoritária. Dois episódios complicados, envolvendo a questão de sua moradia – tanto na Baronata como na Villa Bresso – prejudicariam mais ainda sua situação. Entre um episódio e outro, Bakunin foi a Bolonha em julho de 1874 para participar de uma insurreição e, sem dúvidas, para morrer na luta pela revolução, mas, com o rápido fim da insurreição, isso não aconteceu. Em 1876 voltou a Berna para encontrar-se com o médico e amigo Adolf Vogt, mas chegando lá, em 14 de junho, teve de ser internado e morreu em 1 de julho de 1876. A morte de Bakunin causou uma comoção geral nos meios revolucionários e operários. Seu funeral, simples e sem muitas pessoas, aconteceu em 3 julho; três companheiros da Federação Jurassiana pronunciaram palavras de adeus: Schwitzguébel, Guillaume e Reclus; Joukovsky falou em nome dos eslavos, Paul Brousse em nome dos franceses, Salvioni dos italianos, e Betsien dos alemães.


A VIDA E A OBRA

Tratar da vida e da obra de Bakunin não é tarefa das mais simples e diversos esforços vêm sendo empreendidos para reconstruir sua história prática de luta e suas concepções teóricas; esforços que, certamente, ainda serão muito necessários.

Bakunin foi um personagem intrigante; era imenso, medindo quase dois metros de altura, e foi ficando cada vez mais gordo – comia, bebia e fumava impressionantemente. Era inteligente, afetuoso, generoso, ético, franco, e gozava de intuição, energia e vontade sem precedentes. Destacam-se também suas qualidades como organizador, orador e, certamente, como homem de ação; era imensa sua capacidade de liderança, de persuasão, de aglutinação e de mobilização. Sua participação ativa em grande parte dos acontecimentos que envolveram as lutas sociais e as mobilizações populares na Europa do século XIX exerceu significativa influência.

No entanto, não são só suas qualidades práticas que se destacam; como colocou Rudolf Rocker, “Bakunin era um autor brilhante, ainda que seus escritos necessitem de sistematização e organização”.[16] O socialismo de Bakunin data dos anos 1840, e evoluiu aos poucos, de um idealismo que tinha por objetivo um mundo novo, passando por um socialismo democrático e nacionalista que, depois das prisões, desenvolveu-se em um socialismo libertário, um anarquismo de base classista e revolucionária, que só chegaria depois da metade dos anos 1860, quando Bakunin tinha mais de 50 anos.

São os escritos de meados da década de 1860 até o fim de sua vida que fundamentam as bases teóricas do anarquismo e defendem uma série de concepções que merecem destaque, tanto pela originalidade, quanto pela capacidade de prognosticar o futuro e pela influência que exerceram tanto durante sua vida quanto depois.

Algumas dessas concepções merecem destaque: o materialismo que reconhece a influência mútua das esferas, a recusa do etapismo, a possibilidade de revolução nos países mais ou menos desenvolvidos economicamente, a afirmação de todos os oprimidos como potenciais sujeitos revolucionários, a luta internacional de massas (concepção determinante para o desenvolvimento futuro do sindicalismo revolucionário e do anarco-sindicalismo), a impossibilidade de utilizar o Estado como um meio de luta, a necessidade da destruição imediata do Estado – juntamente com o capitalismo – na revolução social, e o coletivismo como proposta de sociedade futura. Destacam-se também suas concepções sobre a luta contra o imperialismo e o colonialismo, que sustentavam a participação dos anarquistas nas lutas de libertação nacional, buscando transformá-las em lutas revolucionárias; e também sua concepção de um modelo de organização política que propôs, pela primeira vez, uma relação diferenciada entre partido e movimento de massas, considerando que essa organização, com caráter de minoria ativa, não teria relação de hierarquia e domínio com o movimento popular, mas deveria possuir função de fermento e motor, estimulando seu crescimento e desenvolvimento e dando às massas o protagonismo nas lutas e na revolução.

De fato, há muito potencial a ser explorado na vida e na obra desse “homem que foi grande no intelecto, na vontade, na energia perseverante”.[17] Um potencial que tomou corpo em sua prática de luta e em sua teoria desenvolvida nos livros, artigos e cartas.

Como colocaram seus companheiros Carlo Cafiero e Elisée Reclus, Bakunin

“passava noites inteiras redigindo longas epístolas aos seus amigos do mundo revolucionário e, algumas dessas cartas, destinadas a fortalecer os tímidos, a despertar os adormecidos, a traçar planos de propaganda ou de revolta, tomaram as proporções de verdadeiros volumes. São essas cartas que explicam, sobretudo, a prodigiosa ação de Bakunin no movimento revolucionário.”[18]

Por essa afirmação, é possível ter idéia da relevância das cartas de Bakunin, que agora são publicadas. Elas certamente auxiliarão na difusão e na compreensão da vida e da obra de Bakunin, que são tão inspiradoras para aqueles que, ainda nos dias de hoje, desejam à transformação social.

2010




NOTAS

1. Max Nettlau. “Prologo”. In: Mikhail Bakunin. Obras Completas. Vol. I, p. 7.
2. G.D.H. Cole. Historia del Pensamiento Socialista. Vol. II, p. 203.
3. Friedrich Engels. “Democratic Pan Slavism”, 1849.
4. Mark Leier. Bakunin: the creative passion, p. 142.
5. Amédée Dunois. “Michel Bakounine”. In: Michel Bakounine, p. 9.
6. Fritz Brupbacher. Bakunin, o Satã da Revolta, p. 71.
7. Mikhail Bakunin. “Confissão”, 1851.
8. Idem. Carta a Alexandre II de 14 de fevereiro de 1857.
9. Idem. “Organização”, 1866.
10. Idem. “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”, 1867.
11. A distinção entre os nomes “Fraternidade” e “Aliança” foi feita por Max Nettlau, para facilitar a compreensão histórica, visto que Bakunin utilizava diferentes nomes para referir-se a essas organizações.
12. Paul Avrich. Bakunin & Netchaev, p. 11.
13. Sam Dolgoff. “Palabras Previas”. In: Mikhail Bakunin. Obras Completas Vol. I., p. 1.
14. Eduardo Colombo. “Introdução”. In: Mikhail Bakunin. O Princípio do Estado e outros ensaios, p. 17.
15. Max Nettlau. História da Anarquia Vol. I., pp. 174-175.
16. Rudolf Rocker. “Introduction”. In: G. P. Maximoff. (org). The Political Philosophy of Bakunin, p. 21.
17. Carlo Cafiero e Elisée Reclus. “Apresentação”. In: Mikhail Bakunin. Deus e o Estado, p. 7.
18. Ibidem., p. 8.


BIBLIOGRAFIA

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