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Política e mídia no Brasil: interseções para uma análise histórico-estruturante

category brazil/guyana/suriname/fguiana | cultura | opinião / análise author Tuesday March 05, 2013 19:59author by Valério Brittos, Bruno Lima Rocha e Thiago Eloy Zaidan Report this post to the editors

Este trabalho condensa alguns momentos da mídia brasileira, relacionando sua plataforma (impressa, radiofônica ou televisiva; analógica ou digital), o salto tecnológico para dominar esta cadeia de valor de bens simbólicos e a relação com a conformação de classe dominante, centrando o eixo de análise na capacidade de (des)regulação do Estado brasileiro. Assim, desenvolve um recorde histórico (sem chegar-se a uma periodização finalizada), no âmbito da Economia Política da Comunicação (EPC), desta forma considerando a apropriação dos recursos comunicacionais no capitalismo, utilizados preferencialmente para sustentação e reprodução do sistema, sendo periféricas as experiências não-hegemônicas desenvolvidas.
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O presente estudo insere-se numa trajetória de pesquisa envolvendo a relação comunicação, políticas e história que demarca a trajetória dos autores, direta ou indiretamente presentes em pesquisas anteriores e atual dos autores. Remete ainda à experiência dos pesquisadores Valério Brittos e Bruno Lima Rocha como ex-docentes da disciplina História da Comunicação, no Curso de Comunicação Social da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

As fontes de pesquisa são essencialmente bibliográficas, analisadas não somente em cruzamento, mas considerando a própria trajetória de observação, investigação e docência dos dois primeiros autores. Já o período de análise centra-se prioritariamente no século XX e década inicial do século XXI, não obstante passese pelo século XIX, quando, tardiamente, é implantada a imprensa no país, com a chegada da Família Real. O estudo leva em consideração as especificidades do campo da comunicação: de um lado, o papel simbólico dos produtos culturais assegura-lhe uma funcionalidade no capitalismo que vai além da rentabilidade direta, sendo a forma de comunicação do sistema com a sociedade; de outro, a subsunção dos bens comunicacionais no capitalismo é parcial, de onde podem se abrir brechas não-hegemônicas.

Ao longo deste artigo destaca-se períodos-chave, a começar pelo século XIX, com a chegada da imprensa no Brasil – no bojo de uma transição pactuada que conduz à descolonização do país – e o cenário precedente, marcado pelo controle da metrópole à circulação de mídias, o que reflete na fragilidade da circulação de ideias.

No momento seguinte, no tópico referente à comunicação contra-hegemônica impressa – situado em meados do primeiro quartel do século XX –, versase sobre os esforços contra-hegemônicos, encetados por meio de imprensas operárias e aparelhos culturais alternativos gestados pela própria classe.

Aborda-se, ato contínuo, o advento do rádio no país – a partir da década de 1920 –, das primeiras experiências à transmutação da mídia rádio – inicialmente fundada em pretensões educativas – ao modelo comercial hegemônico, passando por sua popularização, vinculada essencialmente a interesses econômicos e políticos consonantes com o status quo. Na sequência, trata-se do período convencionalmente chamado de Era de Ouro do Rádio, onde a radiofonia, capitaneada pela rádio Nacional, reforça a então capital federal como centro de emissão cultural do país.

Nos anos posteriores, no seio do segmento privado, beneficiado pela regulação existente, surge a complexa corporação midiática de Assis Chateaubriand. Tal complexo sustenta o surgimento da televisão no Brasil, a partir de 1950, ponto a partir do qual é dedicado o tópico seguinte: a TV analógica, da fase elitista dos primeiros anos a instrumento de coesão social e de identificação de um país de dimensões continentais; a despeito da notória concentração dos polos emissores nos grandes centros – problemática a respeito da qual também se reflete, não sem mencionar o emblemático case rede Globo. A emissora de Roberto Marinho pode ser considerada ainda um arquétipo da entrada de capitais estrangeiros no contexto de um regime autoritário civil militar condescendente. Regime este que contou com o suporte ideológico da televisão brasileira.

No bojo da redemocratização, aborda-se a problemática da distribuição das concessões de rádio e TV e os aspectos políticos envolvidos, passando pela pujante presença da classe política nos meios privados e a consequente utilização do espectro público como matéria-prima para cunhagem de moedas de troca político-fisiológicas, prática acentuada nos anos 1980.

Por fim, é discutida a atual fase da comunicação no Brasil, a da multiplicidade da oferta permeada, induzida pela substituição da plataforma tecnológica, que, especialmente na televisão brasileira, ocorre subordinada às tradicionais estruturas hegemônicas observáveis no sistema analógico, a despeito da potencialidade democratizante da digitalização e da existência de janelas contra-hegemônicas. É frisada ainda a digitalização do rádio, em curso, e a TV por assinatura.

Mídia impressa e século XIX

Ao atravessar um momento de inflexão da política brasileira, de descolonização com transição pactuada, no século XIX, o Brasil sente o abismo entre a cultura não-letrada e a capacidade de produção de discursos de um liberalismo oscilando entre liberal-conservador e conservador. A imprensa chega ao país com um enorme atraso, mesmo com relação à América colonial: no México, a primeira oficina remete a 1539, enquanto nos Estados Unidos é de 1638. Chega a imprensa no Brasil em 1808, junto com a transferência/fuga da Família Real portuguesa para o país, curiosamente de forma clandestina, num porão do navio Medusa.

O controle da imprensa no período colonial, incluída dentro da chamada proibição de manufaturas, fez se sentir na ausência de inserção e circulação de discursos políticos e a não assimilação das ideias transformadoras para a época. Apesar da proibição da imprensa até 1808, livros e periódicos já circulavam antes disso, de forma importada ou ilegal, entre os poucos membros da elite interessada em leitura. Ao mesmo tempo, transcorreram tentativas de implantação da imprensa no século XVIII, logo eliminadas pela Coroa e seus representantes. De toda forma, a não existência de universidades brasileiras ajudou a conter a circulação de ideias. Ainda assim, a primeira greve no sentido moderno da palavra foi a da categoria dos trabalhadores gráficos de Niterói, em meados do século XIX.

Como as elites políticas eram relativamente pequenas, a palavra impressa circulava com pouco volume, mas de forma contundente, intraelite. Nesse sentido, o jornal como forma de “partido” tem sua consecução assegurada, uma vez que o voto censitário e a vida política da monarquia parlamentar não permitem amoldar em ideias avançadas, de tipo liberal-radical, a palavra impressa e o próprio discurso do mundo da política. Enfim, para a reduzida participação que havia, o pouco de mídia impressa circulante assegurava a condensação do pensamento dominante e a oposição possível, contando com ausência de elementos populares.

Comunicação contra-hegemônica impressa e massa de não-letrados

O conceito de apropriação dos meios de comunicação e a reflexão que o fenômeno jornalístico implica na formação de elites e minorias informadas e especializadas se fez notar no Brasil no primeiro período das lutas e formação da classe operária no país (1900-1935).

A maior parte do operariado brasileiro, composto de nacionais ou de imigrantes de primeira e segunda geração, era, então, não-letrada. A difusão de ideias de conflito de classes e não de uma pseudo-harmonização que imperaria tinha de ultrapassar a barreira da circulação de não-letrados. Entram em cena as técnicas de aparelhos culturais, anexos e ligados às lutas sindicais, como parte constitutiva dos discursos de classe.

Estes aparelhos culturais ecoavam os discursos orgânicos das lideranças operárias. Nos momentos de ápice da mídia operária, quando se davam greves pelo controle urbano (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre), os comícios contavam com oradores simultâneos, sem amplificação, que davam vazão a discursos vinculados à linha política dos jornais operários. Estes veículos muitas vezes eram impressos nas gráficas comerciais, fora dos horários de expediente. Em outros tantos casos, eram confeccionados de forma improvisada, “em tipografias de ‘fundo de quintal’, no porão de um sobrado e, até mesmo, confeccionados artesanalmente”, “chegando aos leitores ‘do jeito que dava’” (Carneiro, 2003: p. 46), a despeito da concretude da modernização da imprensa, já experimentada naquele período – ainda que apenas entre alguns poucos veículos de caráter empresarial.

Rádio e ausência de estratégia nacional

Mesmo reconhecendo que toda comparação de períodos históricos é uma temeridade, podendo ser contestada, cabe aqui uma digressão. A incapacidade do país de pôr em sua agenda de governo o avanço das tecnologias de informação já se faz notar na guerra de patentes típica da fase do capitalismo monopolista.

O padre Roberto Landell de Moura faz uma demonstração pública de seu experimento de transmissão radiofônica em 1900, conseguindo sua patente em 1901. Até hoje, no entanto, internacionalmente não é reconhecido o trabalho de Landell de Moura, sendo o físico italiano Guglielmo Marconi considerado o pai do rádio, enquanto a inovação foi introduzida, difundida e formatada comercialmente a partir dos Estados Unidos.

No Brasil o advento do rádio deu-se na década de 1920, como meio de comunicação da elite, inacessível às massas, dirigindo-se a quem tivesse poder aquisitivo para importar do exterior os aparelhos receptores, na época demasiadamente caros. Indícios apontam que as primeiras transmissões radiofônicas no Brasil foram realizadas pela Rádio Clube de Pernambuco, em 1919. No entanto, a história oficial descreve que, no dia 07 de setembro de 1922, durante as comemorações do centenário da independência brasileira, foram os cariocas que ouviram o rádio pela primeira vez (Ortriwano, 1985: p. 13). No ensejo, o entusiasmo somente não foi maior porque a profusão de chiados atravessou-se diante da voz do então presidente da República, Epitácio Pessoa, que discursava. Contudo, o primeiro projeto de radiodifusão no Brasil, fazendo comunicação social e não experiências, deu-se somente no ano seguinte. Coube ao pioneiro Edgar Roquette Pinto, em 1923, a inauguração da primeira estação de rádio do país. Tratava-se da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, cujos objetivos eram principalmente educativos, o que levou à inviabilização da proposta quando o modelo comercial imperou, fazendo com que a emissora tivesse seu controle transferido para o governo federal, em 1936. Por ocasião de sua fundação, entretanto, o entusiasmado antropólogo Roquette-Pinto chegou a afirmar que “o rádio é o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à escola; […] o guia dos sãos, desde que realizado com espírito altruísta e elevado” (Chagas; Figueira; Mazzonetto, 2010: p. 9).

O Brasil não tinha um parque industrial de fabricação nem de transmissores e nem receptores, enquanto a maior parte da população brasileira continuava não-letrada e era vetado o voto aos analfabetos. Esta ausência de objetivo estratégico para criar um ambiente de circulação de informações se fará sentir em outras questões estratégicas, como na defesa do petróleo brasileiro. A iliteracia do brasileiro permitiu uma enorme expansão do rádio, mas não para combater esta condição ou para debater os grandes problemas nacionais. Sua incorporação foi essencialmente para permitir o faturamento econômico de grupos privados ou difusão de objetivos políticos por governos e operadores políticos, em ambos os casos sustentando o sistema.

Era do Rádio e domínio de enclave da capital cultural do Brasil

Na chamada Era de Ouro do rádio, a então capital da República reforça a sua posição como capital “cultural” do Brasil. O “controle da fala”, surgido na Rádio Nacional do Estado Novo, e depois permanecendo na própria emissora durante uma boa parte do período da chamada democracia populista, tem sua contrapartida nos modelos de financiamento da mídia eletrônica brasileira.

A regulação, ou a falta desta, nota-se no ramo privado, quando a complexa corporação de Chateaubriand faz-se valer de mecanismos de financiamento a fundo perdido (bastante “heterodoxos”), da possibilidade de importação de transmissores potentes para a época e do não desenvolvimento de indústria nacional para o setor.

Caparelli cita que, no Brasil, o rádio atuou como um mediador dos discursos das classes hegemônicas para as demais classes da sociedade (Caparelli, 1986). Por meio de tais discursos, a manutenção de um modelo que favorecia a uma determinada classe em detrimento dos demais estratos sociais foi justificada e protegida, graças aos esforços de desvio de atenção de problemas nevrálgicos do modelo adotado. Há de se considerar, ainda, o fato de que:

Muitas emissoras de rádio AM brasileiras, ainda hoje, se caracterizam por exercer o papel de canalizadoras das demandas populares através de programas comandados por radialistas, muitos dos quais, têm se transformado, com sucesso, em políticos profissionais [...]. Mais recentemente, o jornalismo de televisão vem também assumindo esse papel de canalizador de demandas através do chamado “jornalismo comunitário” (Lima, 2009: p. 23).

No momento do ápice da comunicação radiofônica, o modelo concentrador privado com auspício estatal surge e consolida-se. O binômio mídia impressa (jornal e revista) e rádio, somado aos fundos estatais e à intervenção política direta, faz dos Diários Associados de Assis Chateaubriand um modelo concreto de liderança no oligopólio.

Chatô, como era conhecido o magnata, foi, aliás, o responsável pela implantação oficial da televisão no Brasil, em setembro de 1950. Na ocasião, seu grupo de mídia já detinha, além de emissoras radiofônicas consolidadas, a popularíssima revista O Cruzeiro, considerada uma publicação tecnicamente de vanguarda, quiçá o marco do moderno no Brasil. A inflexão futura deu-se na entrada de capitais estrangeiros, de forma estruturante na TV brasileira e no novo modelo de Estado, de abrangência nacional, surgido após o 1º de abril de 1964.

TV analógica e suas primeiras fases

Nas primeiras fases da TV, a Elitista (19501964), a Populista (1964-1971) e do Desenvolvimento Tecnológico (1975-1985) (Mattos, 2002), jogou papel fundamental a relação entre o capital nacional e as relações assimétricas destes capitais com o Estado brasileiro e seus centros decisórios. O projeto de país ancorava-se em códigos culturais “comuns”, que pudessem substituir uma ausência de coesão social e de identificação do país continental além do padrão do idioma.

Ante a notória tendência à concentração geográfica nos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro – quando definido o modelo de rede, no final dos anos 70, com a viabilização das transmissões por microondas e a disseminação do videoteipe – os grupos televisivos fixam a produção de seus produtos midiáticos nessas mesmas regiões. Restam às demais emissoras, espalhadas pelo território brasileiro, o título de afiliadas, na maior parte do tempo repetindo conteúdos. Tal modelo de estrutura passa pela propugnação da redução de custos (Dias, 1979: p. 264) e, posteriormente, passou a estende-ser à mídia rádio, embora em escala bem inferior.

Tal modelo é, ao menos potencialmente, arrefecedor dos regionalismos, em detrimento de uma estandardização que expõe em profusão as classes médias dos centros Rio e São Paulo como modelo para todo o Brasil, fenômeno fruto de uma mídia que produz de e para os grandes centros, negligenciando as demais localidades, vistas como menos lucrativas, por, inclusive, não serem grandes mercados consumidores. Por outro lado, hoje o espaço local surge revalorizado, inclusive enquanto mercadoria, até porque a ideia de uma programação única nacional, com fortes elementos internacionais, provocou reações de públicos interessados em conteúdos mais próximos de sua realidade.

Símbolo do modelo concentrador, a TV Globo ocupa a posição de liderança após 1965, através de sua relação com o centro decisório político e com o ingresso de capital estrangeiro (Time-Life), permitindo a construção de um elevado padrão tecnoestético, o que representou a criação de uma linguagem própria e sua consolidação como formadora/deformadora de seu campo e mercado.

O caso Globo – Time-Life, descrito por Guareschi (1987. p. 44-48), dentre outros autores, revela-se como um arquétipo de uma das espécies de vínculos econômicos as quais os meios de comunicação social privados podem ser submetidos: o multinacional. Em 1962, a Globo, então em implantação, acenou positivamente para a proposta da Time-Life, que oferecia um aporte superior a US$ 5 milhões. O grupo estadunidense levava a cabo a sua estratégia de diversificação e a Globo valeu-se da ajuda para montar um aparato que lhe permitiu transmissões com qualidade técnica superior. A entrada de capital estrangeiro continuou pelos anos subseqüentes, tendo a TV Globo do Rio de Janeiro sido lançada em 1965.

A quantia oriunda do exterior chocava-se com a legislação brasileira, que impedia a entrada de capitais internacionais nos meios de comunicação nacionais, com vistas à manutenção da soberania. A infração resultou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que, em 1967, declarou o acordo Globo – Time-Life como ilegal. O país, entretanto, desde 1964, já vivia a conjuntura do regime ditatorial civil-militar. O presidente de então, general Castello Branco, diante da constatação da CPI, agiu de forma amena, concedendo um prazo para regularização da ocorrência.

Guareschi aponta ainda que a TV Globo, já após o golpe e por ocasião de sua instalação (1965), além de “servir de canal de entrada do capital estrangeiro no país, como já acontecera nos outros países da América Latina”, teve participação ativa no enfraquecimento da opinião pública contra a manutenção do regime ditatorial civil militar instaurado pouco antes, em 1964, fornecendo, na medida do possível, elementos legitimadores para os golpistas (Guareschi, 1987: p. 47).

O regime autoritário pós-1964, por seu turno, pode ser considerado um dos capitaneadores da fase populista da TV brasileira, na medida que, diante de uma autocracia explícita, “os veículos de comunicação passam a exercer papel de difusores ideológicos, mas para isso é preciso criar público. E essa criação também se dá via adoção de estratégias de popularização a partir de uma série de mudanças na programação” (Barbosa, 2007: p. 178). Além da função de difusão ideológica, a popularização da programação foi propugnada pelo acréscimo do consumo, acarretado, sobremaneira, pela política de expansão de crédito.

Democratização e regulação como moeda de troca

Com a volta da democracia formal (representativa), fica clara a sobrerrepresentação do sistema de network, com a interseção entre filiadas e afiliadas, respectivamente emissoras cujo capital é detido pelas cabeças de rede e aquelas que retransmitem seu conteúdo, mas possuem outros proprietários. A sobrerrepresentação se dá no próprio Congresso, onde uma média de um terço dos deputados e senadores, em cada legislatura, é composta por donos de rádio e TV.

No Brasil os vínculos políticos estão, de fato, fortemente presentes nos meios de comunicação privados. O formato brasileiro de distribuição de concessões de emissoras de televisão e rádio deixa a cargo do Estado, ao menos teoricamente, a faculdade de dar “a palavra final sobre quem explorará a título precário” (Caparelli, 1986: p. 23) os nacos de espaços no espectro público. Caparelli revela que, durante o regime ditatorial civilmilitar, mais precisamente no período entre 1964 e 1979, foram distribuídas 112 concessões para a exploração da difusão televisiva pela iniciativa privada, bem mais que as 33 concessões autorizadas nos anos imediatamente anteriores, de 1950 a 1964 (Caparelli, 1986: p. 23).

Acerca da distribuição de concessões pelo Estado, Caparelli afirma serem “ditadas por apadrinhamentos políticos ou por simples desdobramentos do poder econômico” (Caparelli, 1986: p. 80). O poder de irradiar bens simbólicos em massa é concedido a grupos que representam os mesmos interesses políticos e econômicos, desfavorecendo, assim, a pluralidade das idéias em pleno espectro público.

Durante a própria Assembleia Nacional Constituinte a concessão de canais foi moeda de troca para temas de ordem menor e casuísticos, como a duração do mandato presidencial. Entre 1985 e 1988 o então presidente José Sarney pleiteava apoio para a aprovação do mandato de cinco anos, sendo as concessões de radiodifusão usadas como instrumento para a efetivação deste projeto. Foram distribuídas outorgas sobretudo para “políticos, parlamentares, ex-parlamentares e chefes políticos ou grupos empresariais com ligações com partidos ou grupos políticos”, ao passo que nenhuma das concessões foi destinada a “instituições da sociedade civil não governamental, sindicatos ou cidadãos comuns sem vinculação partidária ou com grupos políticos outros” (Alves, 1999: p. 109). Números fornecidos por Antunes dão conta de que, no período, 1.028 freqüências do espectro, que praticamente esgotou-se, foram abonadas – para viabilizar emissoras de rádio e televisão – por meio do então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães (Antunes, 1994: p. 111). Muitos políticos passaram a enveredar no ramo da comunicação.

Trata-se de um caso emblemático de distribuição de concessões como fomento ao vínculo político dos meios de comunicação, exemplificando a tese de que não só o Estado exerce pressões que possibilitam o vínculo político com a mídia, mas, conforme Faraone (1979: p. 159), os próprios proprietários dos meios de comunicação, são, não raro, políticos em atividade. Isto transcorre especialmente no tocante à mídia regional. Em tais termos, o potencial de emissão de bens simbólicos é utilizado com finalidades políticas, agindo não como instrumento democrático – epíteto do qual os meios procuram se revestir – e sim como fator de desequilíbrio em processos eleitorais. Nessas circunstâncias, dissimulações – como o falseamento de fatos – e favorecimento que levem a votos são utilizados.

A ascensão de novas elites civis em um país nacionalmente integrado implica na pulverização de redes locais de pequenos complexos de mídia eletrônica e impressa, na reprodução em esferas locais das relações assimétricas com o Estado – tanto na concessão, como na cobertura jornalística e no financiamento via publicidade estatal. Ao mesmo tempo, abre margens para começar a multiplicar a oferta de produtos comunicacionais e jornalísticos. Desta forma, aumenta relativamente a quantidade disponível de bens simbólicos, sem alterar a relação assimétrica com o Estado, que, assim como a formação de oligopólio como classe de mercado, caracteriza o sistema capitalista.

Multiplicidade da oferta e nova barreira digital

A atual fase da comunicação no Brasil e da TV em particular, a da Multiplicidade da Oferta (Brittos, 2010: p. 17-29), foi antecedida pelo período da Transição e Expansão Internacional. Isto se dá também no momento de troca de plataforma tecnológica, o que, pela base conceitual schumpeteriana (Schumpeter, 1982), implica em uma situação de possível fragilidade das organizações empresariais líderes.

A globalização capitalista, em seus três campos inter-relacionados, econômico, político e cultural, faz se sentir nos mercados de comunicação do Brasil e na interface com as telecomunicações e as transnacionais, que ocupam posição líder nesse setor (exemplo: o provedor de acesso e conteúdo Terra, da Telefónica espanhola).

Nisso, verificam-se movimentos pendulares, como a chegada da TV paga no Brasil, o esforço contra-hegemônico que redundou na da Lei do Cabo, a implantação física de redes coaxiais primeiro e de fibra ótica depois e a inexistência de um serviço público de acesso universal para a internet.

Para Ramos e Martins:

A regulamentação da TV a Cabo foi, [...], apenas um momento de um processo que se anuncia como muito mais longo e, politicamente, mais complicado: a re-regulamentação das comunicações brasileiras, preparando-as pra as fusões, associações e parcerias empresariais, que poderão comprometer nossa frágil democracia, caso não sejam acompanhadas das salvaguardas necessárias de controle e acesso público […] (Ramos; Martins, 2000: p. 169).

A televisão por assinatura surge com a modalidade a cabo no final da década de 1940, nos Estados Unidos, como recurso técnico em propugnação da recepção de sinais diante de interferências ocorridas especialmente em regiões montanhosas. No Brasil, as primeiras tentativas de implantação de TVs a cabo só ocorrem na década de 1970. No ensejo:

Interesses diversos estavam em jogo, sobretudo políticos – centrados no Ministério das Comunicações e no Poder Legislativo – e os econômicos, de empresas de equipamentos eletrônicos até as grandes redes de rádio e TV. Assim, tentou-se, como de costume, regulamentar o novo serviço de uma forma obscura, através de Decreto baixado pelo Ministério das Comunicações […] (Ramos; Martins, 2000: p. 146).

O caso da digitalização da televisão brasileira, por seu turno, tem semelhança com o padrão de desenvolvimento subordinado, onde o Estado ocupase mais em garantir a posição de liderança de uma ou poucas organizações e a manutenção do oligopólio do que desenvolver as capacidades soberanas de produção de conhecimento estratégico.

Muito se tem esperado das transmissões digitais. Transmitidas digitalmente, as imagens ficam livres de “fantasmas” e “chuviscos”, pois são sintonizadas ou não, e a qualidade do som torna-se equivalente ao atributo do CD. Esta tecnologia também é amigável à mobilidade, sendo o sinal já captado por aparelhos móveis, e permite a interatividade, embora num nível mais elevado isto depende de (novamente) decisões políticas, o que passa pelos interesses do mercado (principalmente) e da sociedade (via de regra subordfinados).

Ao entrar nesta nova era o Brasil precisou optar por um de três padrões disponíveis. Escolheu o japonês, o preferido dos difusores, especialmente os privados. Ao fazer algumas adaptações e incorporar um software de interatividade desenvolvido pela PUC do Rio e pela Universidade Federal da Paraíba, foi concebido o que vem sendo chamado de Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD).

Embora festejado pela Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert), o sistema brasileiro não é unânime. Especialmente por privilegiar a alta definição em detrimento da multiprogramação, que, segundo Lia Ribeiro Dias, colunista do portal especializado TeleSíntese, “limitou o número de emissoras praticamente às existentes” (Dias, 2007).

A mudança para o novo patamar tecnológico poderia se constituir numa possibilidade de abertura para novos atores, não só comerciais, mas essencialmente com propósitos contra-hegemônicos, como sindicatos e movimentos sociais em geral, a partir da partilha de cada um dos canais em quatro programadores de conteúdos, bem como outorga de novas concessões.

Para a alteração, seria necessário o enfrentamento dos interesses hegemônicos, especialmente dos radiodifusores, que fizeram uma dura campanha pela não entrada na cadeia de valor de operadores de redes (que poderiam fazer a gestão dos canais divididos em várias programações). Este é mais um dos casos da história da comunicação brasileira (ou da história do país, diretamente) em que a oportunidade de alguma mudança estrutural foi perdida, comprovando que a inovação tecnológica, por si, não produz a alteração no sistema produtivo.

Embora pouco debatido publicamente, neste começo de século XXI, o rádio brasileiro também está preste a reinventar-se, assim como vem ocorrendo com a televisão. Hoje, sob o sistema analógico, para se instalar uma emissora de baixa potência bastam R$ 5 mil em equipamentos (RÁDIO..., 2006), de modo que o maior empecilho para o surgimento de novas estações radiofônicas “legalizadas” reside nos trâmites legais para obtenção de concessão junto à União.

Por meio da digitalização da radiodifusão, as transmissões das emissoras AM deverão alcançar a qualidade sonora das transmissões FM. As FM, por sua vez, deverão transmitir as programações com qualidade similar ao som de um CD. Em todas as faixas é possível transmitir dados, simultaneamente ao áudio.

Com a iminente digitalização, todavia, os custos aumentam consideravelmente. A transição custará caro para as emissoras, especialmente para as comunitárias e educativas, além de praticamente marginalizar as chamadas “rádios livres”. Os aparelhos digitais são importados e custam bem mais que os equipamentos de transmissão analógica.

Da forma como estão postos, os meios de comunicação são parte imanente da difusão de ideologias de uma classe hegemônica na sociedade. Caparelli constata que a imprensa, no modo de produção capitalista, age no sentido de seu reforço e expansão, contribuindo decisivamente para a naturalização da dominação da classe hegemônica (Caparelli, 1986; p.43). Nesse sentido:

no exercício de sua função ideológica, ligada ao capital, a mídia é cada vez mais requisitada a cumprir o papel de divulgadora e introdutora do capitalismo, tarefa que, diante da complexificação da sociedade, com menos força é gradualmente desempenhada por outras instituições. Utilizando-se de avançadas redes digitais, as indústrias da cultura são hoje os principais veículos de apresentação e divulgação do viver capitalista, agora renovado com as pseudovantagens da sociedade global (Brittos; Miguel, 2008: p. 38).

Contudo, evidentemente, as janelas contra-hegemônicas continuam existindo e são apropriadas conforme as possibilidades de cada momento histórico, passando por questões que envolvem a comunicação, mas que vão além dela, principalmente em sua concepção instrumental.

Considerações conclusivas

Os meios de comunicação de massa exercem influência sobre os indivíduos, auxiliando a formação de opiniões e decisões destes e pautando os assuntos que as pessoas debaterão durante o dia, inclusive nas discussões relativas aos pleitos eleitorais, como sugere o clássico estudo de Maxwell Mccombs e Donald Shaw (1972: p. 176-187). Além da faculdade de legitimação, a mídia atua como mediadora entre as experiências coletivas e as individuais, contribui com a atividade do consumo, integra um novo conjunto de instituições produtoras e emissoras de sentido nas sociedades modernas e ocupa o posto de arena dos debates políticos.

Para além dessas constatações, a ausência de uma massa letrada de cidadãos reforça a relevância política das mídias eletrônicas no Brasil. O projeto de país e sua integração nacional têm na formação de um mercado de comunicação com base na classe de oligopólio uma de suas bases.

A alteração da estrutura produtiva nos mercados de comunicação não muda a conformação das relações assimétricas destes agentes econômicos com o Estado. A abertura de possibilidades dá-se na chegada de novos agentes (como as transnacionais) e não em novas relações, que poderiam avançar em direção à simetria.

Qualquer atuação contra-hegemônica na interseção da política com a mídia brasileira implica no desenvolvimento soberano da estrutura produtiva para a comunicação (na convergência com as telecomunicações) e no domínio das mídias por parte de agentes coletivos distintos e em posição diversas dos líderes do oligopólio. Toda alteração estruturante neste setor pode influir decisivamente para mudar as relações assimétricas nos Estado brasileiro.

Referências:

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