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Anarquismo Social, Luta de Classes e Relações Centro-Periferia

category brazil/guyana/suriname/fguiana | movimento anarquista | policy statement author Tuesday December 02, 2008 00:31author by Federação Anarquista do Rio de Janeiro - FARJ Report this post to the editors
O anarquismo, para nós, é uma ideologia, sendo esta um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação – o que chamamos de prática política.

ANARQUISMO SOCIAL E ORGANIZAÇÃO

ANARQUISMO SOCIAL, LUTA DE CLASSES E RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA

[...] porque o anarquismo é uma ideologia
que se recusa a criar novos sistemas centrais
com novas áreas periféricas.

Rudolf de Jong

O anarquismo, para nós, é uma ideologia, sendo esta um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação – o que chamamos de prática política. A ideologia exige a formulação de objetivos finalistas (de longo prazo, das perspectivas de futuro), a interpretação da realidade em que se vive e um prognóstico, mais ou menos aproximado, sobre a transformação desta realidade. A partir desta análise, a ideologia não é um conjunto de idéias e valores abstratos, dissociados da prática, com um caráter puramente reflexivo, mas, sim, um sistema de conceitos que existe, na medida em que é concebido junto à prática e está voltado a ela. Assim, a ideologia exige uma atuação voluntarista e consciente com o objetivo de imprimir à sociedade a transformação social desejada.

Entendemos o anarquismo como uma ideologia que fornece orientação para a ação no sentido de substituir o capitalismo, o Estado e suas instituições, pelo socialismo libertário – sistema baseado na autogestão e no federalismo –, sem quaisquer pretensões científicas ou proféticas.

Como outras ideologias, o anarquismo possui história e contexto específicos. Ele não nasce de intelectuais ou pensadores alheios à prática, que buscam apenas a reflexão abstrata. O anarquismo tem sua história desenvolvida no seio das grandes lutas de classe do século XIX, quando foi teorizado por Proudhon, e tomou corpo em meio à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), com a atuação de Bakunin, Guillaume, Reclus e outros que defendiam o socialismo revolucionário, em oposição ao socialismo reformista, legalista ou estatista. Esta tendência da AIT foi futuramente conhecida por “federalista” ou “antiautoritária” e teve sua continuidade na militância de Kropotkin, Malatesta e outros.

Portanto, foi no seio da AIT que o anarquismo tomou corpo, “na luta direta dos trabalhadores contra o capitalismo, pelas necessidades dos trabalhadores, por suas aspirações à liberdade e à igualdade, que vivem particularmente nas massas de trabalhadores nas épocas mais heróicas”[1]. O trabalho de teorização do anarquismo foi realizado por pensadores e trabalhadores que estavam diretamente envolvidos com as lutas sociais e que auxiliaram a formalizar e difundir este sentimento que estava latente naquilo que se chamou “movimento de massas”. Desta forma,

o anarquismo na sua gênese, nas suas aspirações, em seus métodos de luta, não tem nenhum vínculo com qualquer sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais. Quando apareceram homens que se sentiram sufocados pelo ambiente social em que estavam forçados a viver, e cuja sensibilidade se viu ofendida pela dor dos demais como se ela fosse a sua própria, e quando estes homens se convenceram de que boa parte da dor humana não é conseqüência fatal de leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas deriva, por outro lado, de feitos sociais dependentes da vontade humana e elimináveis por obra do homem, abriu-se então a via que deveria conduzir ao anarquismo.[2]
Com o passar dos anos, o anarquismo desenvolveu-se teorica e praticamente. Por um lado, contribuiu de maneira ímpar com episódios de transformação social, conservando seu caráter ideológico, como, por exemplo, na Revolução Mexicana, na Revolução Russa, na Revolução Espanhola, ou mesmo em episódios brasileiros, como na Greve Geral de 1917 e na Insurreição de 1918. Por outro lado, em determinados contextos o anarquismo assumiu certas características que lhe retiraram este caráter ideológico, transformando-o em um conceito abstrato, que passou a constituir-se tão somente em uma forma de observação crítica da sociedade. Com o passar dos anos, este modelo de anarquismo assumiu uma identidade própria, encontrando referências na história e, ao mesmo tempo, perdendo seu caráter de luta pela transformação social. Isso se evidenciou, de maneira mais gritante, na segunda metade do século XX. Pensado a partir dessa perspectiva, o anarquismo deixa de ser uma ferramenta aos explorados na sua luta pela emancipação e funciona como um passatempo, uma curiosidade, um tema para debate intelectual, um nicho acadêmico, uma identidade, um grupo de amigos etc. Para nós, esta visão ameaça fortemente o próprio sentido do anarquismo.

Essa desastrosa influência no anarquismo foi notada e criticada por diversos anarquistas, desde Malatesta, quando polemizou com os individualistas que eram contra a organização, passando por Luigi Fabbri, que realizou sua crítica das influências burguesas no anarquismo ainda no início do século XX[3], até Murray Bookchin que, em meados da década de 1990, apontou este fenômeno e buscou advertir:
A menos que eu esteja gravemente errado – e eu espero estar – os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo estão sofrendo um desgaste de longo alcance a um ponto em que a palavra anarquia tornar-se-á parte do vocabulário elegante burguês do próximo século – desobediente, rebelde, despreocupado, mas deliciosamente inofensivo.[4]
Defendemos que o anarquismo retome o seu caráter original de ideologia, ou como definimos anteriormente, de um “sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação, [...] de prática política”. Buscando retomar esta caráter ideológico do anarquismo e para nos diferenciar das demais correntes que estão no amplo campo no anarquismo contemporâneo, reivindicamos o anarquismo social, pois corroboramos as críticas de Malatesta, Fabbri e afirmamos a dicotomia identificada por Bookchin, de que há hoje um anarquismo social, voltado às lutas e com um objetivo de transformação social, e um anarquismo de estilo de vida, que renunciou à proposta de transformação social e de envolvimento nas lutas sociais de nosso tempo.

Para nós, o anarquismo social é um modelo de anarquismo que, como ideologia, busca ser o fermento dos movimentos sociais e da organização popular, com o objetivo de superar o capitalismo, o Estado, e de construir o socialismo libertário – autogestionário e federalista. Para isso, sustenta um retorno organizado dos anarquistas à luta de classes, com o objetivo de retomar o que chamamos de vetor social do anarquismo. Acreditamos que é entre as classes exploradas – as maiores vítimas do capitalismo – que o anarquismo tem condições de florescer. Se, como colocou Neno Vasco, devemos buscar jogar as sementes do anarquismo no terreno mais fértil, este terreno é para nós a luta de classes, que se dá nas mobilizações populares e nas lutas sociais. Buscando opor o anarquismo social ao anarquismo de estilo de vida, Bookchin afirmou que
o anarquismo social está radicalmente em desacordo com o anarquismo que é focado no estilo de vida, a invocação neo-situacionista ao êxtase e a soberania do ego pequeno burguês que cada vez contrai-se mais. Os dois divergem completamente em seus princípios de definição – socialismo ou individualismo.[5]
Frank Mintz, outro militante e pensador contemporâneo, ao comentar o título de seu livro Anarquismo Social enfatizou: “este título deveria ser inútil, pois os dois termos estão implicitamente ligados. É do mesmo modo equivocado porque sugere que pode existir um anarquismo não-social, fora das lutas.”[6] Desta maneira, entendemos que o anarquismo social está necessariamente implicado na luta de classes.

Dentro de nossa visão do anarquismo social, como “ferramenta fundamental de suporte às lutas cotidianas”[7], temos também a necessidade de elucidar nossa definição de classe. Mesmo considerando a luta de classes central e absolutamente relevante na sociedade de hoje, entendemos que os marxistas, ao elegerem o operário fabril como sujeito único e histórico da revolução, desprezaram todas as outras categorias das classes exploradas, enquanto sujeitos potencialmente revolucionários. O conceito de classe trabalhadora dos autoritários, que se circunscreve somente à categoria dos trabalhadores da indústria, não dá conta da realidade das relações de dominação e exploração que ocorreram durante a história e nem mesmo das relações que ocorrem na sociedade presente, da mesma forma que não dá conta da identificação dos sujeitos revolucionários de tempos passados e presentes.

A partir da necessidade de elucidação deste conceito de classe, incluímos dentro do conjunto das classes exploradas – que podem e devem contribuir com o processo de transformação social por meio da luta de classes – outras categorias que receberam, em grande medida, a atenção dos anarquistas durante a história. Esta definição do conceito de classe não modifica a luta de classes como terreno privilegiado da atuação do anarquismo social, mas traz uma forma diferente de enxergar seu objetivo: de transformação das relações centro-periferia, ou mais especificamente, de transformação das relações de dominação das periferias pelos centros. Baseados na classificação de Rudolf de Jong[8] e na nossa própria e recente história de luta, conceituamos o conjunto das classes exploradas, a partir das relações centro-periferia. Desta maneira, fazem parte deste conjunto:
a. Culturas e sociedades completamente estranhas e distantes do centro, de maneira nenhuma “integradas”, e que são “selvagens” aos olhos do centro. Por exemplo, os índios do Amazonas.

b. Áreas periféricas relacionadas ao centro e pertencendo a estruturas políticas e socioeconômicas que tentam, ao mesmo tempo, manter suas identidades. São dominadas pelo centro, ameaçadas em sua existência pela expansão econômica deste. Pelos padrões do centro são “atrasadas” e subdesenvolvidas. Por exemplo, as comunidades indígenas do México e dos países andinos. Outros exemplos nesta categoria – talvez devêssemos falar em um subgrupo b.1 – são pequenos produtores, trabalhadores especializados e camponeses ameaçados em sua existência econômica e social pelo progresso do centro e que ainda lutam por sua independência.

c. Classes econômicas ou mesmo sistemas socioeconômicos que costumavam pertencer a um centro, mas que voltaram a uma posição periférica após inovações tecnológicas e desenvolvimentos socioeconômicos no centro. Por exemplo, o lumpemproletariado, trabalhadores informais precarizados e o exército permanente de pessoas desempregadas.

d. Classes sociais e grupos que fazem parte de um centro num sentido econômico, mas que são periféricos num sentido social, cultural e/ou político: as classes trabalhadoras, o proletariado em sociedades industriais emergentes, as mulheres, os negros, os homossexuais.

e. Relações centro-periféricas de natureza política, seja entre Estados ou dentro deles: relações coloniais ou imperialistas, relações capital versus província etc. Tais relações no sistema capitalista desenvolvem-se paralelamente às relações econômicas mencionadas acima – ou, grupo e.1: dominação neocapitalista, colonização interna e exploração.
Aceitando esta classificação, e conscientes de suas limitações, definimos o conjunto das classes exploradas como as áreas periféricas que estão dominadas por um centro. É importante ressaltar que não consideramos parte deste conjunto das classes exploradas indivíduos que estejam, em teoria, em áreas periféricas, mas que, na prática, estabeleçam relações de domínio sobre outros, constituindo-se em novos centros. Daí a necessidade de todas as lutas das classes exploradas terem uma perspectiva revolucionária, para que não busquem, simplesmente, fazer com que partes das áreas periféricas constituam-se em novos centros.

A partir desta definição, há duas maneiras de se pensar a transformação social: uma, autoritária, utilizada historicamente pelos herdeiros do marxismo (revolucionários ou reformistas) e outra, libertária, utilizada pelos anarquistas.

Os autoritários, incluindo alguns que se dizem anarquistas, pensam no centro como um meio, e têm sua política orientada para ele. Para eles, o centro – sendo este considerado o Estado, o partido, o exército, a posição de direção – é instrumento para a emancipação da sociedade, e “a revolução significa em primeiro lugar a tomada do centro e de sua estrutura de poder, ou a criação de um novo centro”[9]. A própria concepção de classe dos autoritários está baseada no centro, quando definem o proletariado industrial como sujeito histórico – o que está descrito na letra “d” da definição citada acima – e excluem e marginalizam outras categorias das classes exploradas que estão na periferia, como, por exemplo, os camponeses.

Os libertários não pensam no centro como um meio, e lutam permanentemente contra ele, construindo seu modelo revolucionário e sua estratégia de luta em direção a todas as periferias – explicitadas pelas letras que vão de “a” a “e” na definição acima. Ou seja, em sua atuação na luta de classes, o anarquismo considera como elementos das classes exploradas comunidades tradicionais, camponeses, desempregados, subempregados, sem-tetos e outras categorias freqüentemente desconsideradas pelos autoritários. “A luta, dessa forma, seria encaminhada por quem realmente [sente] os efeitos do sistema, e por conseguinte [precisa] urgentemente aboli-lo.”[10] Na periferia, os anarquistas estimulam os movimentos sociais pela base e buscam construir a organização popular para, em solidariedade, combater a ordem existente e criar uma nova sociedade que seja baseada na igualdade e na liberdade, e na qual as classes já não façam mais sentido. Nessa luta, os anarquistas utilizam-se de meios que contêm dentro de si os germes da sociedade futura.
A concepção anarquista das forças sociais por trás da mudança social é muito mais geral [...] que a fórmula marxista. Diferentemente do marxismo, não concede um papel específico ao proletariado industrial. Nos escritos anarquistas encontramos todos os tipos de trabalhadores e de pobres, todos os oprimidos, todos aqueles que de algum modo pertencem a grupos ou áreas periféricas e, portanto são fatores potenciais na luta revolucionária pela mudança social.[11]
Com esta concepção das forças revolucionárias, afirmamos que “ao que tudo indica, é na periferia, nas ‘margens’, que a revolução mantém acesa sua chama”[12]. Portanto, nossa conclusão é que o anarquismo deve estar em permanente contato com as periferias para a busca de seu projeto de transformação social.
Notas:

1. Dielo Trouda. "Plataforma organizativa por una Unión General de Anarquistas". Tradução ao espanhol revisada e corrigida por Frank Mintz. Utilizaremos citações a partir dessa tradução feita diretamente do russo, pois as versões a que temos acesso, tanto em português, quanto espanhol, ambas traduzidas do francês, possuem várias divergências em relação ao original russo. Apesar de o título do documento estar aqui em espanhol, estamos nos referindo ao mesmo documento traduzido para o português como A Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários.

2. Errico Malatesta. "Anarquismo y Anarquia". Excerto de Pensiero e Volontà, 16 de maio de 1925. In: Vernon Richards. Malatesta: pensamiento y acción revolucionarios. Buenos Aires: Anarres, 2007, p. 21.

3. Luigi Fabbri. Influencias Burguesas sobre el Anarquismo.

4. Murray Bookchin. Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida: um abismo intransponível. São Paulo: Faísca/Hedra, 2008 (no prelo).

5. Ibidem.

6. Frank Mintz. Anarquismo Social. São Paulo: Imaginário/Faísca/FARJ/CATL, 2006, p. 7.

7. FARJ. "A Propriedade é um Roubo". In: Protesta! 4. Rio de Janeiro/São Paulo: FARJ/CATL, 2007, p. 11.

8. Como o próprio autor afirma, esta classificação não visa esgotar as relações e há categorias que se sobrepõem. O termo "área", ainda segundo o autor, refere-se mais a um conceito social, do que um geográfico. Rudolf de Jong. "Algumas Observações sobre a Concepção Libertária de Mudança Social". In: Paulo Sérgio Pinheiro. O Estado Autoritário e Movimentos Populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, pp. 305-353. A classificação original está nas páginas 309 e 310 do livro. Este texto foi reeditado em 2008 pela Faísca Publicações, em co-edição com a FARJ, com o título de A Concepção Libertária da Transformação Social Revolucionária.

9. Ibidem. p. 312.

10. FARJ. "Por um Novo Paradigma de Análise do Panorama Internacional". In: Protesta! 4!, p. 31.

11. Rudolf de Jong. Op. Cit. p. 324.

12. FARJ. "Por um Novo Paradigma...". In: Protesta! 4!, p. 31.

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