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Sobre a Política de Alianças

category internacional | movimento anarquista | opinião / análise author Monday March 02, 2009 18:49author by José Antonio Gutiérrez D. Report this post to the editors

Problemas em torno da construção de um pólo libertário de luta

Neste artigo, o autor discute a questão das alianças, passando por temas de muita relevância aos anarquistas como: programa, sectarismo, hegemonia, crítica e autocrítica, entre outros.
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SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS

PROBLEMAS EM TORNO DA CONSTRUÇÃO DE UM PÓLO LIBERTÁRIO DE LUTA

José Antonio Gutiérrez Danton

Este artigo surge da necessidade de retomar certas discussões que ficaram esquecidas nos finais dos anos 90, em nosso esforço de construir uma alternativa anarco-comunista. Creio que, neste processo, deixamos muitas discussões pela metade, deixamos muitos argumentos não estabelecidos, o que hoje significa que, provavelmente, muitas das questões que acreditamos estarem superadas e absolutamente claras, talvez não estejam. Creio ser necessário, portanto, retomar algumas destas discussões que, por mais básicas que possam parecer, não são menos importantes. Na realidade, este mesmo artigo encontrou sua estrutura original na resposta a um de nossos “próximos”, em um debate a respeito da atitude que os libertários devem ter em relação à esquerda “autoritária”.

Retomamos estas discussões, não com os mesmos argumentos que provavelmente utilizaríamos há uma década atrás, ainda que o espírito continue sendo o mesmo. Nestes dez anos, tivemos alguns avanços, talvez não tantos como gostaríamos, mas eles estão aí. Armados com nossos acertos e, sobretudo, com nossos equívocos e erros, retomamos estas discussões. Contudo, aprendemos e ganhamos experiência.

Creio que o assunto das alianças em raras vezes recebe a devida atenção nos meios libertários. Como muitos outros aspectos ainda insuficientes em nosso movimento, as alianças são algo que ocorrem ou não ocorrem, deixando em raras vezes o registro do porquê foram tomadas certas decisões e não outras. Acontece que as gerações militantes mais novas se vêem forçadas a deixarem-se guiar por suas próprias intuições quando se trata desta questão. Isso aconteceu conosco, e com base nestas experiências, que foram boas e más, podemos tirar algumas conclusões.

Por isso, considerei necessário escrever um pequeno documento sobre este tema. Porém, no decorrer da escrita, me dei conta que era impossível tratar da questão das alianças sem ao menos tratar três outros assuntos que interagem intimamente com ele: o problema do fortalecimento interno do movimento e seu programa revolucionário; o problema da hegemonia política no movimento popular em seu sentido mais amplo; e o problema da crítica e da autocrítica. Este breve documento, portanto, deve ser entendido como uma contribuição para a questão das táticas e estratégicas do movimento, com ênfase no problema das alianças.

AS ALIANÇAS E O PROGRAMA ANARQUISTA

Um dos aspectos mais fracos do anarquismo, em geral, é quando se trata da questão das alianças políticas. Tendo a acreditar que uma política de alianças correta requer, primordialmente, uma visão programática sólida por parte do movimento anarquista. Um programa revolucionário não é somente uma acertada e incisiva crítica ao capitalismo e ao Estado; é, além disso, como esta crítica se aplica a uma situação histórica concreta e como ela se traduz em um conjunto construtivo de propostas para superar as contradições existentes que infestam uma determinada sociedade.

A carência de tal programa e análise deixa o anarquismo como um ator frágil diante do curso dos eventos (como uma boa idéia, mas impossível de ser aplicada), uma vez que impede de nos convertermos em uma alternativa para conquistar o coração do povo em luta. Esta incapacidade de nos converter em uma alternativa em direito próprio, refletida na ausência do programa revolucionário, significa que terminamos definindo nossa política em função de “terceiros” – freqüentemente, os partidos mais numerosos da esquerda –, seja por proximidade ou rechaço.[1] E esta debilidade é o que se encontra subjacente à nossa inepta política de alianças que, com freqüência, consiste em duas posturas maniqueístas: ou rechaçamos toda possibilidade de trabalho com outros grupos da esquerda ou nos convertemos em seus incondicionais seguidores.

Sabemos que os anarquistas não farão a revolução sozinhos. E sabemos também que nossa teoria política nos distingue do resto do movimento revolucionário: não podemos esperar que outras correntes de esquerda, que com toda segurança estarão nas lutas e nos processos de transformação, pensem e atuem como anarquistas; afirmar isso faz com que a organização dos anarquistas, e a própria definição do anarquismo, sejam redundantes. Como já disse anteriormente[2], o papel dos anarquistas no movimento revolucionário é insubstituível e se não impulsionarmos nosso programa, ninguém mais o fará – ainda que haja em determinadas ocasiões setores do movimento popular que se aproximem espontaneamente de nossas posições, ou que desenvolvam linhas políticas similares, o anarquismo tem uma responsabilidade como portador específico de uma série de experiências, conteúdos e reflexões que deve ser traduzida em um programa de ação concreto.

SECTARISMO

Freqüentemente, os anarquistas estarão em meio a um movimento popular, revolucionário ou de luta, que em sua imensa maioria não almejará a destruição do Estado e que, ao contrário, almejará sua conquista. Freqüentemente estamos em meio a uma classe trabalhadora que muitas vezes não aspira mais que a mudança de governo como última solução à sua situação. Podemos, então, adotar duas posturas frente a esta questão: a primeira é assumir uma posição elitista e rechaçar todo contato com estes trabalhadores e com estes setores do movimento popular para não manchar nosso imaculado movimento. Isto, na realidade, não é uma posição política, senão algo de caráter quase religioso, que em lugar de favorecer a ação, no melhor dos casos, a paralisa em favor do resguardo da fé. E, no pior dos casos, transforma-se em um nocivo sectarismo.

O sectarismo é a incapacidade de tolerar posições teóricas ou práticas diferentes das suas. O sectarismo caracteriza-se pela ignorância, tanto das idéias alheias, como de suas próprias[3], assim como pela nula intenção de se transformar a sociedade. Os sectários entendem a política como uma questão de identidade, de um grupelho, como uma torcida de um time de futebol e não como uma atividade transformadora da realidade. O sectarismo caracteriza-se pelo “estrabismo político”, ou seja, por sua incapacidade de reconhecer o inimigo político ou de classe. O sectarismo também se caracteriza pela “miopia política” que o impede de distinguir as diferenças que são essenciais daquelas que não são. Nos casos patológicos mais extremos, o sectarismo alimenta-se de um complexo de inferioridade, da obsessão e da fixação com o que os demais fazem ou dizem[4], de uma arrogância complexada e da vaidade, e de uma atitude de plena amargura frente à existência.

O sectário é incapaz de reconhecer os méritos alheios e carece de inteligência ou de critério para discernir, em uma discussão, com o que está de acordo ou do que diverge: sua atitude é de aceitação ou rechaço absolutos. O sectário carece de honestidade e sentido crítico para debater, e limita-se a denunciar e a cair em diálogos de surdos. No geral, a visão de mundo do sectário é tão rígida, tão inflexível, tão fanática, tão amarga, tão indesejável e pouco atrativa que acaba mais por espantar o povo do que por atraí-lo à causa revolucionária. Em certos círculos anarquistas, estupidamente, exalta-se o sectarismo como uma virtude, quase o convertendo em um “princípio fundamental” do anarquismo. Porém, o sectarismo é de espírito autoritário e nada tem de libertário.

A respeito do sectarismo em relação a outros movimentos, nos diz Luigi Fabbri:

“Aqueles partidos, que aspiram chegar ao poder, quando o conseguem, indubitavelmente, serão inimigos dos anarquistas, mas como isto está um tanto longe, como sua intenção pode ser boa e muitos dos males que pretendem eliminar nós também pretendemos, e como temos muitos inimigos comuns e, em comum, teremos, sem dúvidas, de nos livrar de mais de uma batalha, é inútil, quando não prejudicial, tratá-los violentamente, já que neste momento o que nos divide é uma diferença de opinião, e tratar violentamente alguém porque não pensa ou não trabalha como nós é uma prepotência, é um ato anti-social. (...) Certamente, muitas de suas doutrinas são errôneas, mas para demonstrar seus erros não são necessários insultos; alguns de seus métodos são nocivos à causa revolucionária, mas se trabalharmos diferentemente e se realizarmos a propaganda pelo exemplo e pela demonstração adequada, os ensinaremos que nossos métodos são melhores.”[5]

O sectarismo é daninho e prejudicial. Exemplos históricos nos são abundantes: no Chile, depois do golpe de Pinochet, a primeira reação do PC foi jogar a culpa do golpe nos “ultra-esquerdistas” (o MIR) a quem chegou a definir como “cavalos de Tróia do imperialismo”; certos maoístas apoiaram o golpe a Chávez em 2002 e hoje festejam entusiasmados as mobilizações da direita em Sucre e em toda a Bolívia, chegando a defini-las como de mobilizações de massas e de esquerda; no Chile, vergonhosamente, alguns anarquistas, muito minoritários, aplaudiram o golpe de Pinochet que derrotou o “regime marxista”, enquanto seus companheiros mais conseqüentes eram perseguidos ou participavam da frágil resistência; outros anarquistas na Argentina apoiaram o golpe militar que derrubou Perón; e, mais recentemente, recordamos o 1º de Maio de 2003 no Chile, em que anarquistas e comunistas terminaram confrontando-se em um vergonhoso incidente, enquanto a polícia, com a confusão, aproveitava-se da situação. O movimento anarquista alemão, dividido entre as correntes de Joseph Peukert e Johann Most, durante o século XIX, viveu um dos episódios mais tristes da história de seu sectarismo, quando Peukert delatou Johann Neve à polícia, militante alemão que estava na clandestinidade e pertencia ao Freiheit, o grupo de Most, morrendo mais tarde nos cárceres prussianos.[6] O sectarismo está repleto de histórias de delação em meio a sua cegueira fanática. É necessário recordar essa história de injúrias para se ter sempre presente a que leva o sectarismo.

A segunda posição é assumir as diferenças e, apesar delas, decidir trabalhar com esses setores para a transformação social. Quem assume essa segunda posição deve, necessariamente, suscitar o problema do que é uma política de alianças correta. Pois, também, não podemos nos converter em aliados incondicionais de uma esquerda que se distancia muito de nosso pensamento, nem nos converter em fiéis seguidores das “massas”. Devemos ser capazes de confluir, onde se deve, com o conjunto do movimento revolucionário, mas como anarquistas. Sempre como anarquistas, sempre difundindo nosso programa e agitando nossas bandeiras, sempre conservando o direito a uma crítica madura e construtiva diante do desacordo. E também sempre tendo em mente que, como anarquistas, representamos um setor específico do povo, tanto como outros setores políticos também representam um setor e tendências no seio do povo. Sustentar que os anarquistas são o único setor legitimamente representante do povo é sinônimo de elitismo, e uma opinião que não deixa nada a desejar à teoria leninista do partido único.[7]

HEGEMONIA NO SEIO DO POVO

Outro problema, nesse caso, que está ligado ao problema das alianças, é, como conseguir gerar uma certa hegemonia libertária no movimento popular; como conseguir que nosso pólo antiautoritário pese mais e determine majoritariamente o desenrolar dos eventos em relação ao pólo autoritário. Pois devemos recordar que o povo não é “libertário” e nem “autoritário” por natureza. Ambas as tendências existem igualmente no seio da classe trabalhadora, e têm encontrado sua expressão política mais ou menos difundida na esquerda jacobina e na esquerda libertária. Trabalhar o tema das alianças, portanto, sem prestar suficiente atenção ao problema da hegemonia no seio do povo, é realizar um trabalho incompleto, é iniciar bem uma tarefa sem saber como concluí-la.

NECESSIDADE DO PROGRAMA

Como já dissemos anteriormente, toda essa questão vincula-se ao problema do programa, pois para poder estabelecer alianças nas quais sejamos um ator em direito próprio, devemos ser um ator fortalecido, com visão, com propostas, com tática e estratégia claras. Devemos articular muito bem nosso pensamento, com os problemas atuais e com a saída que queremos. Isso é a alma de um programa revolucionário. Além disso, se queremos ser um fator de peso no movimento popular, para além do espectro de nossas alianças, também devemos aparecer bem armados de análises, de propostas e de um método e um estilo de trabalho social corretos. Para tudo isso, também, é necessário um programa e não somente palavras de ordem vagas ou teoria abstrata.

É, então, a questão do programa que devemos ter resolvido, ao menos em termos amplos e gerais, antes de pensar nas alianças. Pois para saber com quem e como nos unir, transitória ou permanentemente, devemos saber para que queremos fazê-lo, e isso só é possível se soubermos, com toda certeza, o que queremos concretamente – disso também depende a influência que conseguiremos alcançar no movimento de massas: de nossa clareza política e do quão acertada é nossa política.

MENOS AUTOCOMPLACÊNCIA E MAIS AUTOCRÍTICA

As debilidades internas do anarquismo são o principal “calcanhar de Aquiles” que deveríamos buscar superar se quisermos ser um ator de peso nas lutas sociais e assim desenvolver um programa político que possa aglutinar importantes setores do povo e dar golpes de alguma importância no sistema dominante. Exigimos menos autocomplacência e mais autocrítica. Isso foi expressado, eloqüentemente, pelos companheiros do Dielo Trouda, ex-veteranos da insurgência makhnovista na Ucrânia que, analisando o fracasso do anarquismo na Revolução Russa e o surgimento da ditadura leninista afirmaram:

“Adquirimos o hábito de culpar a repressão estatal do Partido Bolchevique pelo fracasso do movimento anarquista na Rússia entre 1917 e 1919. Isso é um grave erro. A repressão bolchevique dificultou a expansão do movimento anarquista durante a revolução, mas foi somente um dos obstáculos. Antes disso, foi a incapacidade interna do próprio movimento anarquista uma das principais causas deste fracasso, uma incapacidade emanada da imprecisão e da indecisão que caracterizaram suas principais afirmações políticas em relação à organização e às táticas. (Esperamos demonstrar e desenvolver esta afirmação em um estudo especial, comprovando com fatos e documentos).

O anarquismo não tinha uma opinião firme e concreta sobre os principais problemas da revolução social, opiniões que eram necessárias para satisfazer as massas que faziam a revolução. Os anarquistas enalteciam a tomada das fábricas, mas não possuíam uma concepção precisa e homogênea sobre a nova produção e sua estrutura. Os anarquistas defendiam o princípio comunista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, mas nunca se preocuparam em aplicar este princípio na realidade. Foi assim que permitiram que elementos suspeitos transformassem este grande princípio em uma caricatura do anarquismo (somente recordando como muitos escroques aproveitaram-se deste princípio para açambarcar bens coletivos em proveito próprio durante a revolução). Os anarquistas falavam muito da atividade revolucionária dos próprios trabalhadores, mas foram incapazes de indicar às massas, nem mesmo aproximadamente, as formas que tal atividade deveria assumir; demonstraram-se incapazes de regular as relações recíprocas entre as massas e seu centro ideológico. Incitavam as massas a livrar-se do jugo da autoridade, mas não indicavam como consolidar e defender os ganhos da revolução. Careciam de opiniões claras e de programas de ação precisos em relação a tantos outros problemas. Isso os afastou da atividade das massas e os condenou à impotência social e histórica. Nisso devemos ver a principal causa de seu fracasso na Revolução Russa. Nós, anarquistas russos que vivemos a prova da revolução em 1905 e 1917, não temos a menor dúvida a respeito disso.

A obviedade da incapacidade interna do anarquismo nos obrigou a buscar meios para alcançar o triunfo.

Em mais de vinte anos de experiência, de atividade revolucionária, vinte anos de esforços nas fileiras anarquistas e de esforços que nada conseguiram, senão fracassos do anarquismo enquanto movimento organizador: tudo isto nos convenceu da necessidade de um novo partido-organização anarquista baseado em uma teoria, uma política e uma tática homogêneas.”[8]

Porém, essa opinião não era somente compartilhada pelos redatores da Plataforma, do grupo Dielo Trouda. Os anarco-sindicalistas russos não se expressavam em termos muito diferentes:

"Nos, anarquistas e sindicalistas – de fato, todos aqueles que crêem que a libertação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores – estávamos muito pouco organizados e éramos muito fracos para manter a revolução rumo ao socialismo. Não é necessário dizer que o socialismo não cairá do céu, e que uma única concepção de socialismo não é suficiente.

(...) Havia uma necessidade urgente de organização sistemática e de coordenação de atividades. A revolução as buscou, mas pouquíssimos elementos estavam conscientes da necessidade e da possibilidade da organização federalista. E a revolução, não a encontrando, lançou-se nos braços do velho tirano, do poder centralizado, que agora sufoca seu respiro vital. Nós estávamos muito desorganizados, éramos muito frágeis, e por isso, permitimos que isto ocorresse.”[9]

Este artigo foi escrito por M. Sergven no periódico anarco-sindicalista russo Vol'nyi Golos Trouda, de setembro de 1918. Este, segundo o historiador Paul Avrich, não seria nem mais nem menos que um pseudônimo de Grigori P. Maximov, alguém que estava certamente muito distante das teses dos plataformistas. É muito significativo que tanto os plataformistas como Maximov, a partir do anarco-sindicalismo, tenham compartilhado uma análise similar sobre as causas da fraqueza do anarquismo russo, assim como as de sua derrota, independentemente de terem optado por soluções distintas para essa fraqueza. Esta autocrítica está muito distante da autocomplacência que nas décadas posteriores viraria regra em nossos círculos libertários.[10]

CRÍTICA E AUTOCRÍTICA

Ainda hoje, estamos acostumados a culpar os autoritários, os burocratas e os reformistas por nossas derrotas, e, assim, lavamos nossas mãos das responsabilidades que nos cabe por não termos sido capazes de imprimir uma orientação diferente aos movimentos. Devemos, antes de ser críticos, ser autocríticos. Pois se não somos capazes de reconhecer a porção de responsabilidade que nos cabe, primeiramente, isso significa que não seremos capazes de aprender as lições que nos dizem respeito para poder avançar. Mas também significa que assumimos nossa impotência e nossa irrelevância nas lutas populares. Pois, se a culpa sempre é dos outros, estamos assumindo que nossa presença, como anarquistas, não faz nenhuma diferença, não tem nenhum efeito. Então, a autocrítica deve sempre preceder a crítica na hora de avaliar os fracassos e derrotas. E podemos ir jogando a autocomplacência pela janela: sempre há algo que poderíamos (ou que podemos) fazer melhor. Negar isso não tem nada de revolucionário, mas sim de conservador e de reacionário.

O fato de que a esquerda autoritária tenha, no geral, estado melhor organizada que a libertária e que tenha contado com um programa político claro, com uma melhor compreensão dos problemas imediatos das massas oprimidas, significa que eles se converteram na força hegemônica na maioria das experiências revolucionárias (com as notáveis exceções da Ucrânia e da Espanha – e ainda, em último caso, souberam impor-se política e não militarmente). Mas tal coisa não foi um fato inevitável nem fatal.

PROGRAMA, PROPOSTAS E ESTRUTURA

Disso deduz-se que, se queremos nos assegurar que nos movimentos revolucionários vindouros, a ala libertária do povo tenha mais importância que a ala autoritária, devemos começar por tornar claro, primeiro, nosso próprio programa, nossas propostas construtivas e nossa estrutura organizativa. Questões para as quais não existem receitas mágicas, ainda que possamos nos inspirar e buscar guias na experiência e na reflexão teórica do passado. Mas nestas experiências ou reflexões não está, nem de perto, a resposta às necessidades que a própria história em movimento nos vai colocando.

APONTAMENTOS PARA UMA POLÍTICA DE ALIANÇAS

Voltemos então ao problema das alianças. Temos de ser muito claros que não existem respostas fáceis para questões como esta. Cada situação é única e deve ser analisada e estudada como tal pelos companheiros que queiram vivê-las. É impossível ter uma fórmula universal e atemporal sobre as alianças, que se aplique de maneira idêntica em todos os locais e momentos. A política não se escreve nem com um papel carbono nas mãos, nem com um molde na cabeça. Mas, repetindo, acreditamos ser possível encontrar certos apontamentos gerais possíveis de serem adaptados e que podem ser úteis a outros companheiros no momento de ponderar a questão das alianças em seu respectivo trabalho de base, ou em sua própria luta.

Em nossa própria experiência de uma década de trabalho, lutas e reflexões em torno destas questões, no Chile pós-ditadura, pudemos extrair algumas conclusões sobre a questão das alianças que podem ser úteis para companheiros em outras localidades ou em outros momentos. Insistimos: estas são somente algumas conclusões, algumas reflexões fundamentais que podem ser úteis para o movimento em geral. Não acreditamos que estes apontamentos, muito gerais, possam, e nem devam, ser convertidos em “tábuas de Moisés”. No entanto, queremos compartilhá-las com o intuito de trocar experiências com o restante do movimento, um hábito que, talvez, devêssemos ter com maior freqüência para aprendermos uns com os outros. Assim, com o intercâmbio e o dialogo construtivo, podemos ir gerando um movimento com maturidade e com dinamismo que se alimente de suas experiências (no lugar de simplesmente vivê-las) e que avance das “intuições compartilhadas” para as “reflexões compartilhadas”.

O desenvolvimento de uma política correta de alianças depende, em nossa opinião e baseados em nossa experiência, de uma série de fatores, a saber:

1. Que o primeiro passo para uma política de alianças correta é o fortalecimento do anarquismo; sem um programa revolucionário, não há possibilidade de nos convertermos em um ator forte em meio a qualquer movimento popular. Somente um programa próprio nos converte em alternativa, retirando-nos do eterno ciclo de condenar ou aclamar terceiros.

2. Que a unidade com outros setores do movimento popular, ainda que muito necessária e de primordial importância – já que não derrotaremos sozinhos o capitalismo –, não deve ser buscada a qualquer custo; somente entraremos em discussões com outras forças políticas na medida em que isso seja relevante para avançar em nosso próprio programa e em nossas próprias iniciativas. Programa e iniciativas que, além disso, longe de serem herméticos, se retro-alimentam constantemente de nossa experiência e do intercâmbio com outros atores do mundo popular. Conseqüentemente, as alianças se convertem na conclusão de nosso próprio desenvolvimento político e não em seu ponto de partida.

3. Que a unidade de ação e a coordenação de iniciativas não signifiquem postergar ou submeter a nosso próprio programa revolucionário.

4. Que a necessária unidade dos setores revolucionários não signifique um “matrimonio” por toda a vida, mas que tenha sentido em função de objetivos precisos, os quais podem ser de curto, médio ou longo prazo. A unidade com outros setores revolucionários deve ser entendida, antes de tudo, como uma unidade de ação, ainda que não descartemos compartilhar certas análises ou discussões quando isso for pertinente.

5. Que tal unidade dos setores revolucionários, imprescindível para avançar contra o bloco dominante, deve acontecer “de baixo para cima e na ação”. De baixo para cima, pois somente coordenaremos espaços concretos onde, efetivamente, nossos respectivos militantes confluam (organizações sindicais, por exemplo) e, sempre e quando compartilharmos certos objetivos mínimos. E na ação, pois acreditamos que é a prática concreta que serve para deixar claros os objetivos e as posições corretas, em vez do debate político abstrato; ademais, como já dissemos, não nos interessam os matrimônios; buscamos a unidade pelas necessidades concretas da luta e para a obtenção de certas vitórias para o campo popular.

6. Que, ainda que no marco das alianças, sejamos capazes, em todo momento, de buscar ampliar nosso marco de influência, de conseguir influenciar a política e os programas de outros setores o quanto for possível, buscando converter o movimento libertário em um pólo hegemônico do movimento popular. Isto é extremamente importante, pois devemos compreender que, ainda que cheguemos a ser uma força política de peso, com bons argumentos e capacidade de mobilização, nunca estaremos sós e sempre haverá outras forças lutando para impulsionar idéias diferentes e até opostas às nossas (para nós, como libertários, a supressão de outras correntes políticas não é sequer uma opção a se levar em consideração). O que não significa a renúncia em defender um movimento popular e um projeto social de baixo para cima, com democracia de base, o mais libertário possível, que seja capaz de abolir o Estado de maneira revolucionária.

FORTALECER A ALTERNATIVA REVOLUCIONÁRIA

Diante disso, os anarquistas não podem perder de vista o panorama geral. Devemos ter claro que qualquer política de alianças deve buscar, antes de tudo, o fortalecimento e o crescimento de uma alternativa revolucionária. Nem o isolamento, nem as más companhias nos servem. Uma aliança que nos cria mais problemas do que outra coisa, não tem nenhuma razão de ser, ainda que nossos aliados reivindiquem-se “revolucionários”, “anarquistas” ou o que quer que seja.

E devemos também ter claro de que tal política de alianças deve ser refletida a cada instante, para assegurar que ela seja coerente com nossas posições políticas e que assim seja proveitosa. Estas coisas não podem ser deixadas ao acaso, pois ainda que possamos estar improvisando, podemos estar certos de que o restante da esquerda e a burguesia não estarão.

CONCLUSÃO

Estas são algumas idéias básicas e alguns apontamentos muito gerais sobre a política de alianças. Não temos maiores pretensões em torno delas, salvo que sejam de utilidade para outros companheiros. E de nenhuma maneira representam algum tipo de substituição para o processo original de reflexão que diz respeito a cada organização e em cada situação específica. Cada contexto é particular e único.

Mas, ainda diante da singularidade de cada contexto, felizmente, não queremos fazer o papel dos marinheiros sem bússola; a história e a teoria nos fornecem apoio e orientação. Contudo, não devemos esquecer que o leme está em nossas mãos e que depende de nós não ir à deriva. Antes de tudo, somos nós os últimos responsáveis pelas nossas ações.

11 de dezembro de 2007


Notas:

[1] Isto é o que chamamos anteriormente de “política de satélite”, na qual os grupos anarquistas aparecem como satélites, orbitando ao redor de outros partidos ou movimentos políticos.

[2]Ver “América Latina, problemas y posibilidades para el anarquismo” http://www.anarkismo.net/newswire.php?story_id=6230

[3] Ou o que é igual, pela falta de inteligência para compreendê-las.

[4] Quando não, na fixação obsessiva por pessoas destacadas de outros movimentos ou partidos.

[5] Luigi Fabbri, Influencias burguesas en el anarquismo, ed. Solidaridad Obrera, París, 1959, pp. 56-57.

[6] Não é de se surpreender, portanto, que quando Emma Goldman se une ao grupo de Peukert nos EUA, com pleno conhecimento do caso de Neve, Most não tenha lhe voltado a dirigir a palavra.

[7] Ainda há muitos anarquistas iluminados que quando a classe trabalhadora faz algo que não se alinha à sua própria visão ou quando apóia tal ou qual partido da esquerda, sustentam que ela não passa de marionete, que é manipulada, que é ignorante. Ou quando o povo realiza qualquer luta que não tenha por objetivo “a revolução social universal”, então é composto de cordeiros, resignados. Em seu elitismo, acreditam que somente o anarquismo (em sua versão mais purista e dogmática) realmente representa os trabalhadores. Esta visão demonstra a incapacidade de compreender dois fatores de grande relevância para qualquer política revolucionária correta. Primeiro, que a classe trabalhadora, que o povo, é muito complexo e é um emaranhado de diversas visões e interesses que nem sempre se harmonizam com uma linha “ideológica” pura. Segundo, que a criatividade das massas, aquele fator tão caro a uma política revolucionária e libertária, manifesta-se ainda quando os trabalhadores expressam idéias com as quais não concordamos. Devemos tratar de entender em que medida essas idéias e ações expressam um comodismo ou uma resposta à sua condição. E mesmo que estejamos em desacordo, devemos tratar de compreender o papel ativo que as massas cumprem nos processos sociais, em vez de crer, teimosamente, que só estão corretas ou que atuam independentemente somente quando estão de acordo conosco.

[8] “Respuesta a los Confusionistas del Anarquismo”, Grupo Dielo Trouda, agosto de 1927. Artigo reproduzido em Facing the Enemy, Alexander Skirda, ed. AK Press, 2002, pp. 224-225. * (N.E.) Este trecho foi revisado a partir da tradução original do russo para o francês apresentada por Skirda em Autonomie Individuelle et Force Collective.

[9] “Los Caminos de la Revolución”, M. Sergven, Vol’nyi Golos Trouda, Moscou, 16 de setembro de 1918. Artigo reproduzido em The Anarchists in the Russian Revolution, editado por Paul Avrich, ed. Thames & Hudson, Londres, 1973, pp. 124-125.

[10] Hoje em dia encontramos, freqüentemente, anarquistas que enchem a boca falando sem parar do fracasso da esquerda latino-americana, do marxismo, etc. Qualquer um que escutasse isso pensaria, ingenuamente, que a história do anarquismo é, ao contrário, a história de uma série incrível de vitórias que fazem tremer os governantes e os capitalistas de todo o mundo. Mas até o anarquista mais alucinado se envergonharia de dizer tal absurdo. A insistência no fracasso dos “outros”, sem analisar primeiro nosso próprio fracasso, é como “o roto falando do rasgado” e não nos ajuda, em absoluto, a sair dos círculos marginais dentro dos quais se confinou o anarquismo em muitos países por décadas. Se é verdade que com os erros e fracassos alheios também se aprende, isso é totalmente inútil se primeiro não se aprendeu com os próprios erros e fracassos.

* Tradução: Daniel Cabelo

* Revisão e edição (em acordo com o autor): Felipe Corrêa

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