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Nota das mulheres da FAG: gênero e conjuntura

category brazil/guyana/suriname/fguiana | anti-fascismo | opinião / análise author Sunday October 28, 2018 21:36author by Mulheres da FAG - Federação Anarquista Gaúcha Report this post to the editors

“Todos os nacionalismos tem gênero, todos são inventados e todos são perigosos […] no sentido de que representam relações com o poder político e com as tecnologias da violência.”

– Anne McClintock

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Uma crise política decorrente de múltiplos fatores como os interesses vorazes do capitalismo financeiro, a corrupção na máquina estatal, o sentimento da falácia do poder político com autorização popular por meio do voto, contribuíram para o cenário de profunda fratura social que vivenciamos nesse momento no Brasil. Parte dessa indignação que sente nosso povo acontece porque a ilusão de aumento de renda decorrente do crescimento do consumo – política dos anos de lulismo – não soluciona problemas da precariedade do povo e nem outras desigualdades estruturais cimentadas no machismo e no racismo. A insatisfação com um modelo político que não permite participação popular, com a corrupção sistêmica de uma classe política privilegiada, com os milhões roubados pelo capital, com a carestia de vida e a violência que vem da desigualdade, em choque com os chamados “temas morais” e com os setores que querem manter seus privilégios levaram à fratura da sociedade brasileira.

Nesse cenário, ganha vulto a candidatura de Jair Bolsonaro, que representa brutalidade, horror, desumanidade. Construída sob forte apelo nacionalista, escancara o avanço conservador da extrema direita e o pensamento fascista no país, onde a (o) cidadã(o) comum vê nessa figura a representação da solução de angústias e problemas imediatos, ainda que não reflita e consiga medir as consequências de sua escolha extremamente violenta e cerceadoras das liberdades individuais. O povo deseja uma mudança, mas não percebe que essa mudança não virá através de um projeto fascista de um falso salvador como o Bolsonaro, ele mesmo faz parte dessa estrutura podre. O sucesso da campanha virtual dele também tem a ver com a sensação de ausência de voz, espaço de expressão na vida pública, que encontra recipiente nas redes sociais. Esse projeto de poder anda de mãos dadas com um grupo que quer uma sociedade construída pela religião que não inclui, feitas por homens que decidem o que é pecado, feita pela lei do dinheiro e da exploração do povo garantidas na bala.

Porém, um dos fatores de adesão a essa figura são as questões comportamentais e as que envolvem gênero – os “temas morais”. Ele é um líder que se posiciona contra toda uma construção dos movimentos sociais e populares, feministas e LGBTQI+ que defendem a igualdade e justiça social, refletindo em políticas de ações afirmativas, de combate à violência a grupos marginalizados, de fortalecimento da representatividade e empoderamento daquelas e daqueles que sentem a exclusão, a exploração e as humilhações diárias. Esses pequenos avanços conquistados pelos movimentos sociais realmente abalaram as estruturas de quem vive em privilégios e vê a “ordem” das suas estruturas sacudidas por grupos com quem antes podiam evitar convívio, ridicularizar, ignorar ou até eliminar. Por isso, uma candidatura e um governo como os representados pelo capitão da reserva apelam para um imaginário onde os privilegiados estavam confortavelmente usufruindo de seu ambiente seguro: sem denúncias, sem precisar repensar atitudes, sem precisar desenvolver empatia, sem precisar conviver com “o outro”, ou seja, vivendo do lado favorável das hierarquias sociais. Mesmo quando a(o) sujeita(o) circula por diferentes inserções sociais, podendo ora usufruir de privilégios, ora de opressão: um homem pobre, uma mulher branca, um LGBTQI+ católico, uma negra heterossexual…

Quando ele diz que vai acabar com todos os ativismos, que vai acabar com os “coitadismos” dos negros, mulheres e LGBTQI’s, está dizendo que nós podemos existir desde que não reivindiquemos nossos direitos. Está incorporando o poder da soberania de estado que julga poder decidir quem pode viver e quem deve morrer. Esse é o recado do projeto de poder que está posto. A defesa do fim dos ativismos é a defesa pública do ódio às mulheres, negros, lgbtqis, imigrantes, de todos que se colocam em luta por direitos.

A aderência do discurso moralizante consegue penetrar inclusive nas(os) de baixo, pois em algum âmbito pode estar dialogando com os preconceitos construídos ao longo de uma vida e inseguranças sobre suas vivências enquanto indivíduo. Apesar do potencial sofrimento de alguns sujeitos que não cabem na universalidade, alguns oprimidos podem defender discursos do opressor, porque viveram toda uma vida submetidos aos elementos da opressão. Daí decorre muitas vezes uma dificuldade de construir identidades positivas e autônomas, de se ver de outra forma, e explica o apoio, ainda que muito pequeno, de mulheres, negros e gays ao Bolsonaro, por exemplo.

Assim, o aumento do debate sobre as diferentes formas de preconceito impusionado pelos movimentos sociais e um maior posicionamento de parcela das(os) brasileiros sobre determinados assuntos, transformando algumas situações antes toleradas e naturalizadas como inaceitáveis, produz um ambiente desconfortável a todas(os) que de repente se veem agindo “errado”, que são interpelados, quando sempre considerou que era “certo”. Vemos com isso que o racismo e o machismo universalistas dificultam mudar os lugares de poder. Tem gente que realmente acha que somos todos iguais, tem dificuldade de compreender que é preciso momentos de diferenciar para igualar. E isso precisa ser trabalhado, para transformar o desconforto em desconstrução de privilégios.

Aqueles que lutam contra o racismo, o machismo, a homofobia, a intolerância religiosa, etc, tornam-se um problema num contexto como esse, são esses grupos que parecem estar produzindo “inversão de valores” considerados os certos. Mas quais valores? Os valores do silenciamento, da violência, da negação de escolhas e possibilidades de ser, da repressão, da manutenção das estruturas de poder e do status quo. Quando se expressa um “resgate nos valores” é a manifestação da vontade de resgate da estrutura escravocrata de sociedade, patriarcal, heteronormativa e negadora de diversidade cultural. Esse resgate é a busca por grupos privilegiados em não perderem o sentido de seu mundo que está sob questionamento. É uma forma de preservar o passado e atualizar o racismo colonial Por isso tanta indignação com conquistas mínimas que nosso povo arrancou.

O nacionalismo que impulsiona a candidatura do Bolsonaro se materializa nas cores da bandeira, na ideia de pátria, numa ideia mentirosa de unidade. Vem de uma ideia de nação unificada mestiça e indiferenciada. Mas não podemos esquecer que a arquitetura estatal é racista, patriarcal e genocida que usa o medo como tecnologia de controle. O Estado tem o monopólio da violência legitimado pelas instituições. As classes dominantes têm a polícia e as forças armadas para proteger seus privilégios, reprimir manifestações e exterminar a população negra e pobre.

O nacionalismo do Bolsonaro é mentiroso, se estrutura na transmissão do poder e da propriedade masculinos. As nações se organizam na diferença de raça e gênero, e nenhuma nação do mundo dá a nós mulheres os mesmo direitos. A nação que o Bolsonaro quer construir é uma nação só para os homens, brancos e ricos, autorizados a fazer o que quiserem com os outros mediante uso da força. A instituição mais essencial para isso é a família. Ele fala muito na família do cidadão de bem, mas a família que ele defende é uma imposição, pois desconsidera muitas outras formas de ser família. É uma família que torna a heterossexualidade norma e que torna natural a subordinação das mulheres aos homens e das crianças aos adultos. No âmbito coletivo, entendendo o estado como uma expressão ampla do poder patriarcal, essa ideia de família também legitima uma hierarquia nacional de homens, brancos e ricos como superiores, e todos os demais subordinados em nome de uma unidade inventada de interesses comuns.

A retórica da austeridade que os políticos usam só beneficia o capital. As violências econômicas do ajuste fiscal, que tende a se agudizar muito com a política econômica ultraliberal prometida por Bolsonaro, aumentam nossa vulnerabilidade diante da violência machista, que tem o ápice no feminicidio, mas que nos atinge diariamente de múltiplas formas. Esse projeto autoritário visa atacar as poucas políticas públicas que temos hoje, como atendimento de vítimas de violência doméstica, atendimento de saúde e acesso ao aborto nos casos permitidos, fim das políticas de educação para a igualdade de gênero, das políticas de assistência social, acesso a serviços públicos, etc…

Entendendo a quem serve esses mecanismos de poder, não esqueçamos que todos os governos, inclusive os de esquerda, também sempre leiloaram nossos corpos. Não são políticas de governos, mas políticas de estado e projetos de nação que sistematicamente nos excluíram. Com um governo Bolsonaro, teremos ainda mais ameaças às nossas liberdades, já que nossos corpos serão uma preciosa moeda de troca com os setores poderosos e as forças no congresso para manter as coisas em “ordem”.

O aprofundamento neoliberal que nos vende tudo, até o necessário para inventar um corpo ideal (padrão) custe o que custar, manipulado para servir ao desejo dos homens e nunca aos nossos, também vende a ideia que o corpo das mulheres está à venda para fins sexuais. Por um lado, querem que sejamos a esposa que trabalha de graça, por outro, o corpo sexualmente explorado da prostituta. Esse é o verdadeiro modelo da família tradicional brasileira: o da servidão das mulheres ao desejo dos homens, submetidas ao seu poder.

É provável que haja um aumento de estupros de crianças e mulheres sem o necessário debate de gênero e sexualidade e com autorização que o Bolsonaro confere para seus seguidores imporem sobre nós suas vontades, inclusive por motivação política. Estupro é uma questão de poder, não de sexo. A violência contra as mulheres é sempre correcional. É para tentar nos corrigir quando não ficamos “no nosso lugar”. A atualização da inquisição tem a roupagem moderna do combate à “ideologia de gênero”. Ao inventar e espalhar mentiras e se comprometer em impedir qualquer agenda relacionada a gênero e sexualidade nós sofreremos ainda mais. Esse projeto tende a agravar problemas de exploração sexual de menores, prostituição, tráfico de mulheres, sexualização violenta e precoce das crianças por meio de uma pornografia cada vez maispesada, que da tela em algum momento da vida passa a realidade… Hoje o Brasil é o país que mais mata LGBTQI’s no mundo. Com um projeto autoritário e licença social para a violência a tendência é um aumento ainda mais dramático de crimes de ódio contra a população LGBTQI+.

O refinamento da repressão vai ampliar ainda mais a violência de estado que executa sumariamente nossa gente nas favelas, que despeja abaixo de bomba de gás quem luta por moradia. E mais uma vez somos nós mulheres que seremos mais atingidas, com medo do fuzil da polícia (cada vez com mais licença pra matar) ou do tráfico apontado para os nossos. O desejo lunático do Bolsonaro de armar a população, a fixação dele e seus seguidores por armas deixaria para nós mulheres o drama de lidarmos com mais essas consequências da violência.

A educação é um filão preferencial de ataque de um governo Bolsonaro. Uma porque grande parte da educação brasileira em todos os níveis é pública, portanto um bom negócio para privatizar. Para termos uma ideia, cerca de 80% dos alunos do Ensino Médio está matriculado em escolas públicas. Daí também as propostas de EAD, que tira de cena a importância da figura do professor na formação e foca em produzir mão de obra ignorante, obediente e barata em larga escala. O sistema nos quer domesticadas (os). Carne humana para o trabalho explorado com o mínimo de direitos. E sobre EAD desde o ensino básico, como trabalharíamos? Como ficarão nossos filhos sem escola? E outra razão de estar na mira é porque educação é espaço de desenvolvimento de pensamento crítico. Não à toa em toda entrevista o candidato fala em manter a “inocência das crianças na escola”, mostrando sua prioridade no Projeto “Escola Sem Partido“.

Somos nós que sofreremos ainda mais vendo nossa família adoecer e não ter atendimento de saúde. Nós, as que cuidamos dos filhos (muitas vezes sozinhas), dos pais, parentes, irmãos. Nós que ficaremos dia após dia na fila do postinho de saúde, do hospital, que veremos os nossos adoecer sem socorro, sem cuidado.

Nós mulheres, que já acumulamos mais de um trabalho além dos cuidados com nossa família, que sofreremos ainda mais com o aumento do custo de vida. Nós, que já perdemos noites de sono pensando como pagar todas as contas e botar comida na mesa, e que perderemos os serviços públicos, perderemos nossa aposentadoria.

A sociedade brasileira é forjada a partir do estupro colonial das mulheres indígenas e negras. Nosso continente e nosso país foi invadido por homens brancos que saquearam desde sempre nossos corpos e nossos territórios. Os mecanismos que justificaram essas violências são basicamente os mesmos acionados hoje para manutenção do poder. A herança dos barões do café, senhores de engenho, charqueadores, donos das construtoras, políticos, com suas relações de compadrio, quer nos explorar cada vez mais fundo na carne e nos manter servindo privilégios de alguns. Fuzis, canetaços, motosserras, paletós dão as regras do jogo.

Mas nós desejamos. Somos protagonistas. Sempre resistimos.

E por tudo isso, dizemos ELE NÃO! Dizemos NÃO e nos levantamos contra o fascismo! Ao invés de um projeto autoritário, queremos construir a mudança com participação popular, com formas horizontais e reais de participação e decisão. Com poder popular e feminismo. É preciso que derrubemos todas as estruturas de opressão e desigualdade, junto com o velho modelo de fazer política onde não participamos de nada e os políticos nos roubam e atacam. Para o sistema e a linguagem da policia, a ocupação da rua é desordem. Para nós, é método e arma de retomada de um projeto de autonomia. Autogestão e democracia direta como novas formas de tomar as ruas e fazer política. Temos que tomar em nossas mãos o protagonismo político na ação direta de ocupar as ruas com nossos corpos. Ocupar cada espaço, ficarmos juntas. A jornada é dura, mas estamos na rua pra lutar. Contra a violência, o ódio e a brutalidade, devolveremos mais feminismo.

A casa grande não vai ter paz. Nós não temos medo de general e de capitão. Mas temos indignação e raiva. E seguiremos assombrando os injustos.

Contra a arquitetura da destruição dos fascistas, lutaremos como for preciso.

Partilha, poesia, arte, educação, solidariedade, força. Assim é nossa arquitetura de um novo mundo. Um mundo com socialismo e liberdade. Não estamos todas.

Essa nota também é por todas as que faltam. Pelas vítimas de feminicídio, pelas arrebentadas por dentro pela violência sexual, pelas lésbicas e trans assassinadas por crime de ódio, pelas presas de delitos menores e presas políticas, pelas ativistas perseguidas ou assassinadas na defesa de suas liberdades, seus territórios e seus recursos, pelas presas ou mortas por aborto inseguro.

Fazemos do luto, luta. Da raiva, força. Dos nossos vínculos, tiramos consolo coletivo. Pelas que lutaram antes de nós, por todas as que não estão e por nenhuma a menos, RESISTIREMOS!

MULHER É RESISTÊNCIA!

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