user preferences

No Curdistão reside a esperança do Oriente Médio e da Ásia Central

category internacional | economia | opinião / análise author Monday December 01, 2014 18:49author by BrunoL - 1 of Anarkismo Editorial Groupauthor email blimarocha at gmail dot com Report this post to the editors

30 de novembro de 2014, Bruno Lima Rocha

Em tempos de barbaridades promovidas pela atuação do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), a resistência em Kobane, terceira cidade mais importante dos curdos, localizada na fronteira entre a Síria (ou o que dela resta) e da República da Turquia, reforça a esperança de uma sociedade não sectária e democrática no Oriente Médio, e com influências até a Ásia Central. [Italiano]
O oeste do Curdistão, região cujo nome em curdo é Rojava, representa uma esperança de novas relações sociais para sociedades de maioria islâmica e operam como um catalisador de solidariedade global.
O oeste do Curdistão, região cujo nome em curdo é Rojava, representa uma esperança de novas relações sociais para sociedades de maioria islâmica e operam como um catalisador de solidariedade global.

Como força política interveniente no processo, destaco duas organizações políticas e suas respectivas versões militares curdas. Uma, a mais antiga, é o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Outra força são as Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG é a sigla a partir da original em árabe), com especial destaque para sua ala feminina, o YPJ, composto por mais de 7000 milicianas. O YPG/YPJ é a expressão militar das forças populares nesta região cujo nome em curdo, Rojava, agora corre o planeta através de portais alternativos.

A força política que dá base para a organização dos três cantões de Rojava é o PYD (Partido da União Democrática). Fundado em 2003 e fruto das novas conexões políticas, sociais e multiconfessionais advindas da reorientação estratégica do PKK, esta força política tem a hegemonia das relações de poder duro na região e, a partir desta condição, recebe aos demais grupos étnico-religiosos em igualdade de direitos civis, sociais e políticos.

Na milícia de maioria curda, estão arregimentados combatentes de diversas confissões (assírios, yázidis, cristãos, armênios, alevis, árabes sunitas e xiitas, turcos de esquerda) para organizar a resistência em Kobane. O YPG/YPJ não são o braço armado do PYD, mas sim as forças regulares de Rojava como território autônomo – semi-independente – operando na prática como um auto-governo regional desde a rebelião curda de 2012.

A autonomia de Rojava se dá com a vitória militar das milícias do YPG/YPJ contra forças integristas da Al-Nusra e do Exército Livre da Síria na chamada Batalha de Ras Al-Ayn (Serêkanî em curdo). Esta longa batalha teve três fases, sendo a cuja primeira de 8 de novembro a 17 de dezembro de 2012, a segunda de 17 de janeiro a 19 de fevereiro de 2013 e a terceira e derradeira fase foi nos dias 16 e 17 de julho de 2013. Ao final, foi assinado um acordo de cessar-fogo com o Exército Livre da Síria (FSA da sigla em inglês) e reconhecida a soberania curda pela mais importante força de oposição ao clã Assad.

Após o controle territorial de mais da metade da fronteira da esfacelada Síria com a Turquia, os reveses em combates contra a Frente Al-Nusra (ramificação da Al-Qaeda na guerra civil síria) e contra o ISIS estabilizou a confederação em um conjunto de cantões no Curdistão sírio totalizando 5 municípios (cantões), 5 cidades e cerca de 100 vilarejos. Neste artigo, nos atemos à natureza do PKK e sua concepção visível. Na série que segue, o tema é a chamada Revolução de Rojava e o projeto político inclusivo e de democracia direta no Curdistão.

O PKK quando fundado (1974, ainda sem esta denominação), continha elementos stalinistas e tentava entrar na rota de apoio dos grupos de esquerda da região, que também atendiam a Guerra Fria nos países árabes e islâmicos. Quando de sua formação inicial, a denominação da legenda (1978) e o começo da insurgência contra o governo turco (em 1984), a Turquia ainda era dominada pela elite laica, militar e kemalista. Esta elite, cuja ala direita promovera uma ditadura de corte fascista e continha hordas de extrema-direita conhecidos como Lobos Cinzentos é composta por seguidores de Kamal Ataturk e a geração de oficiais que criara o país com a dissolução do Império Otomano após este Estado regional-administrativo ser derrotado na 1ª Guerra Mundial.

À época havia um período de Bi-polaridade e, fustigar o embate no Curdistão dentro da Turquia atingia a no mínimo três objetivos indiretos: - fazer guerra no interior de um país membro da OTAN; - atingir um Estado cujas receitas do turismo já eram importantes; - trabalhar dentro da comunidade de emigrados "turcas" (mesmo que fossem curdos) dentro da Alemanha. Já o objetivo estratégico era construir um santuário curdo dotado de uma concepção à esquerda e com um corredor para as áreas curdas da Síria e do Iraque. Mas, há que se ressaltar a transformação ideológica e estratégica desta força política e sua ala militar HPG (Força de Defesa do Povo) desde a mudança de concepção de seu líder histórico.

O pensamento corrente do PKK, certo que atende a uma orientação quase que filosófica do líder e fundador Abdullah Ocalan (Apo), baseado no municipalismo libertário cuja expansão em escala seria é o confederalismo democrático. O projeto político ganhou corpo e vida com a oportunidade dada pela Primavera Árabe e a conseqüente guerra civil síria. Com a fragmentação da soberania jurídica sobre o território do Estado governado pelo clã Assad, houve a chance de uma insurreição popular, anti-Baath e também contra os avanços do integrismo islâmico, financiado pelas monarquias árabes do Golfo.

Há de se reconhecer duas evidências, uma virtude e outra dificuldade. Comecemos pela segunda; há algum lapso – seria um exagero caracterizar como abismo - de compreensão entre a liderança presa, os membros do partido legal no parlamento curdo (DBP, Partido Democrático das Regiões) e as forças guerrilheiras do HPG operando na fronteira com a Síria. Já a virtude está na organicidade das decisões. Na declaração do 11º congresso do partido, realizado entre os dias 5 e 13 de setembro de 2014, com a presença de 125 delegados das quatro regiões do Curdistão e do estrangeiro, os conceitos acima citados constam como linha central da organização.

A Revolução de Rojava tem chance de ser vitoriosa, com o devido suporte e reconhecida hegemonia do PYD e das milícias do YPG e YPJ. Tais estruturas sob influência direta de PKK e da liderança de Ocalan podem vencer militarmente ao ISIS, mas não vencerão sozinhos. Caso isto ocorra, a disputa seguinte é tentar fazer valer a vontade política numa região onde um Estado secular já seria um enorme avanço para a humanidade.

As demandas do auto-governo de Rojava são uma espécie de estatuto de autonomia regional. Esta organização social é nutrida de formas de participação direta, com igualdade de direitos entre os moradores de diversas coletividades étnico-culturais. Nesta condição igualitária estão os plenos direitos de gênero, liberdade religiosa, mas com subordinação destas autoridades para os conselhos populares e as autoridades eleitas. Entendo que caso estas relações sociais venham a ser estáveis e dentro de um espaço geográfico com soberania jurídica e com capacidade de autodefesa em todos os níveis, estaríamos no limite do possível e desejável dentro do mundo islâmico. A superação tanto da teocracia como do confessionalismo político já é muito. Com democracia direta – ou mesmo semi-direta – e plenos direitos para as mulheres (como veremos em outros textos da série do Curdistão), estamos diante de uma nova possibilidade de vida em sociedade.

Dentro desta lógica, o PKK, apesar do personalismo em torno de Ocalan e o perigoso culto a personalidade (problematizaremos isso em outros textos) é uma grande esperança para os povos do Oriente Médio, da Ásia Central. Estas realizações podem ter condições de influência mundial.

A versão original e mais curta deste texto foi antes publicada no Jornalismo B.

This page can be viewed in
English Italiano Deutsch
© 2005-2024 Anarkismo.net. Unless otherwise stated by the author, all content is free for non-commercial reuse, reprint, and rebroadcast, on the net and elsewhere. Opinions are those of the contributors and are not necessarily endorsed by Anarkismo.net. [ Disclaimer | Privacy ]