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Élisée Reclus e a concepção de Estado: elementos de uma crítica multideterminante

category internacional | história do anarquismo | opinião / análise author Sunday February 17, 2013 02:29author by João Gabriel da Fonseca Mateus - Movimento Autogestionário - MOVAUTauthor email joaogabriel_fonseca at hotmail dot com Report this post to the editors

Estado, Élisée Reclus, anarquismo, multideterminações

Este breve texto visa analisar, principalmente, a concepção de Estado para Élisée Reclus. Seu pensamento não é fragmentado e determinista; ele analisa o Estado através da compreensão da sociedade enquanto uma totalidade, ou seja, liga o Estado ao capitalismo e todas suas instituições. O militante anarquista foi espectro de estudos de diversas áreas do conhecimento, sobretudo da Geografia. Sendo assim, é considerado como um dos principais teóricos do anarquismo ao lado de Mikhail Bakunin, Pierre Joseph-Proudhon, Louise Michel, Piotr Kropotkin, Errico Malatesta, Cafiero, entre outros. O anarquista francês foi militante na AIT de 1864 e na Comuna de Paris de 1871 e influenciou além dos movimentos operários, o ambiente escolar-acadêmico através de sua metodologia, a educação para o ensino de geografia, além de dar um enfoque finalista: a destruição do capitalismo e do Estado.
Élisée Reclus
Élisée Reclus


Élisée Reclus e a concepção de Estado: elementos de uma crítica multideterminante


Analisar o Estado para um anarquista nada mais é do que exercitar duas faculdades preciosas do ser humano: “a faculdade de pensar e a necessidade de se revoltar” (BAKUNIN, 2011, p. 38). É caminhando nesse âmago, conforme apontou Mikhail Bakunin, através dessas duas necessidades que buscarei objetivar a necessidade deste texto. Torna-se importante salientar que ao longo das páginas abaixo que constituem este texto, procuro buscar um referencial eminentemente anarquista e revolucionário, com a preocupação de propor (além do que poderia trazer academicamente) uma militância libertária.

A preocupação com o Estado é algo recorrente no anarquismo e constitui um dos pilares da luta contra a sociedade de classes e o capitalismo. Nesse texto, proponho através de uma investigação na obra de Élisée Reclus, expor a sua concepção de Estado trazendo a necessidade do leitor fazer reflexões, (re) significações da atual crítica do Estado através de múltiplas perspectivas e contribuir com um objetivo final e comum: a dissolução das atuais relações sociais marcadas pela existência de classes sociais e do capital.

Por diversos momentos as obras de Élisée Reclus foram relegadas apenas aos cantos de prateleiras da ciência da Geografia. Tal pertencimento se deve menos à sua profundidade intelectual que desenvolveu no campo dessa ciência do que as intenções dos próprios geógrafos e seus intérpretes na tentativa de colocá-lo como um intelectual apolítico ou ainda, esconder a forma como Reclus pensava e interpretava o mundo. Fato não consumado. O reconhecimento científico que Reclus obteve foi muito bom para sua saída da prisão e para cessar temporariamente suas perseguições políticas, conforme nos aponta Paul Boino (2010c, p. 10). Reclus foi convidado para ser professor na Bélgica, no entanto, sofreu resistência por parte da instituição que o proibiu de lecionar, o que fez com que vários outros professores deixassem essa Universidade, fundando a Universidade Livre de Bruxelas, no qual Reclus será professor apenas em 1905.

Obviamente que tal prerrogativa não conseguiu um pertencimento unitário pelo simples motivo que a “militância” ou o “pertencimento ideológico” do autor com sua “profissão” estão indissociáveis. O que faz avançar, em realidade, o debate sobre essa indissociável relação entre a teoria e a realidade é a própria história concreta. Isso é uma questão de classe e, dessa forma, as ideias (ou como alguns gostam, a teoria) não estão desvinculadas de interesses de classe.

Nesse sentido, o objetivo desse texto é, além de resgatar sua concepção de Estado, trazer a tona um geógrafo que deixou uma vasta produção intelectual, e, sobretudo, um geógrafo-anarquista que proferiu duras críticas à sociedade capitalista e as suas formas de organização social, política e econômica (BOINO, 2010c, p. 9).

A obra do francês Jean Jacques Élisée Reclus é um campo fértil ao se pensar o que é o Estado, como este se organiza e quais seus interesses. Porém, suas contribuições se encontram esquecidos e por vezes relegados a um ostracismo na Geografia – conforme apontamos acima – por diversos motivos dos quais destaco dois fundamentais: primeiro, reside pela sua descrição da produção social do espaço que considera as relações entre as sociedades enquanto a junção da vida e da natureza no qual fora criticado e perseguido na época de sua produção ; outra reside no histórico de sua militância anarquista .

Desses motivos relacionados com sua concepção de Estado podemos identificar uma centralidade: a radicalidade de seu pensamento comparado com os grandes geógrafos de sua época, por exemplo, o francês Paul Vidal de La Blache e o alemão Friedrich Ratzel. A preponderância de autores como La Blache e Ratzel, mostra ainda quanto é hegemônico o caráter conservador no campo da Ciência da Geografia. A noção de uma geografia libertária para Reclus está expressa em diversas questões se distanciando das proposições desses geógrafos conservadores. Até mesmo os leitores de Vidal só reproduzem suas obras (de Reclus) mais descritivas, apagando o caráter político e revolucionário do francês (BOINO, 2010c, p. 14).

Analisando Reclus, Ramos (2012) aponta algumas especificidades da geografia de Reclus que são elementares. Vejamos:

Para ele, as condições naturais poderiam ser (relativamente) determinantes quanto menos avançada fosse a organização social. A influência das condições naturais variava de lugar para lugar e de época em época. Portanto, era essencialmente antideterminista. Era ainda anticlerical, sempre procurando criticar as ações das instituições religiosas, do presente e do passado. Como grande parte dos anarquistas, suas posições eram favoráveis à igualdade de gêneros (RAMOS, 2012, p. 4).

Essas questões são importantes para entendermos a concepção libertária de Reclus, já que suas elaborações científicas nunca deixaram de ser libertárias. Porém, o objetivo deste texto não é de analisar o conhecimento estritamente geográfico de Élisée Reclus, mas sim, suas contribuições para o anarquismo social (claro que é indissociável um do outro) com enfoque na sua concepção de Estado.

Antes de tudo precisamos definir o que entendemos por anarquismo. De acordo com Corrêa (2011) apud Schmidt e van der Walt (2009), existe um anarquismo situado historicamente, definido pelos seus princípios e existem diferentes estratégias assumidas ao longo do seu desenvolvimento. Vejamos como ele conceitua o anarquismo:

o anarquismo é uma ideologia, um tipo de socialismo revolucionário, que surge no século XIX colocando-se no campo social (...). O anarquismo não pode ser considerado uma ciência, apesar de utilizar métodos racionais para a leitura da realidade – posicionando-se contra a exploração e a dominação – para a criação de uma perspectiva de sociedade futura e também para o estabelecimento de estratégias e táticas. (...) Como objetivo, o anarquismo propõe a criação de um socialismo autogestionário e federalista, sem capitalismo e sem Estado, que concilie a liberdade individual, a liberdade coletiva e a igualdade (CORRÊA, 2011, p. 47).

Devemos fazer algumas ressalvas e esclarecimentos sobre o conceito de “ideologia” utilizado tanto pelos sul-africanos Michael Schmidt e Lucien van der Walt como por Felipe Corrêa e que fora adotado nesse texto. Primeiro: ideologia historicamente tem outros significados em outras concepções. Por exemplo, na teoria marxista, ideologia corresponde à “falsa consciência sistematizada da realidade”. Se pensarmos assim, o anarquismo se situaria como falsa consciência dos trabalhadores – o que não concordamos que seja; segundo, o termo ideologia para definir o anarquismo, para não ser compreendido como falsa consciência sistematizada da realidade, pode ser substituído por “política” ou como “desenvolvimento de uma práxis” – que une teoria e ação, sendo, portanto indissociável a relação meios e fins. Assim, seria mais claro definir o anarquismo como o desenvolvimento de uma práxis libertária, ou, como uma ideologia, entendida como um conjunto de teorias orientado por suas ações práticas se autodeterminando com o objetivo da transformação social para edificar uma sociedade anárquica.

Recorrendo a essa leitura contemporânea, o anarquismo, como corrente do socialismo – definida acima – não é sinônimo de antiestatismo ou meramente uma corrente libertária e antiautoritária. Pensar o anarquismo de forma reducionista causa uma visão também reducionista da realidade; nem generalizações são cabíveis, pois, não se pode falar de anarquismo antes do capitalismo e nem em anarquismo fora do campo socialista (CORRÊA, 2011, p. 36). Nesse sentido, a concepção de Estado para Reclus não passa fundamentalmente por uma crítica ao Estado em si mesmo, e sim, por vários outros fatores e determinantes, conforme colocaremos abaixo.

Conforme nos referenciamos acima, o anarquismo é uma corrente do socialismo que surge no século XIX, tem profundos desenvolvimentos na teoria de Proudhon e com o russo Mikhail Bakunin onde irá se consolidar com a ADS (Aliança Internacional da Democracia Socialista) na Associação Internacional dos Trabalhadores. Sendo assim, nesse contexto “(...) o anarquismo tornar-se-á um corpo teórico que organiza, sistematiza, representa e justifica a luta, e os métodos de luta, para chegar a uma transformação profunda da sociedade” (COLOMBO, 2011, p. 127).

Pensando nesse sentido, a discussão acerca da concepção de Estado em Reclus tem uma pertinência analítica sobre o fato de que o Estado instaura em sua base a distinção burocrática de organização (a distinção entre governantes e governados) trazendo consecutivamente em seu seio, uma hierarquia para toda a sociedade, já que é “a existência do Estado enquanto princípio de toda forma social que introduz e reproduz, inclusive no seio da revolução, a heterogestão da vida” (COLOMBO, 2001, p.30).

Ao lado de Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, Louise Michel, Élié Reclus, e tantos outros contemporâneos a si, o francês Jean Jacques Élisée Reclus permanece como referência libertária nos círculos anarquistas com suas obras ainda pouco conhecidas e difundidas. Porém, o resgate de suas contribuições torna essencial para pensar a transformação radical de nossa sociedade de forma libertária. Portanto, é no surgimento do novo, através de uma diferenciação radical com a sociedade capitalista que Élisée Reclus apresenta uma proposta de uma sociedade libertária, conforme ele aponta em A evolução, a revolução e o ideal anarquista .

Se para os autores clássicos do anarquismo, por exemplo, o russo Mikhail Bakunin, para a organização de uma nova sociedade se torna “necesario abolir completamente, tanto em el plano de los principios como em el de lós hechos, el llamado poder politico, pues en tanto existi este, exitirán gobernantes y gobernados, amos y esclavos, explotadores y explotados” (BAKUNIN, 1973, p. 78). Para o anarquismo então, apenas uma revolução social poderá elencar a “emancipação dos indivíduos”.

Bakunin demonstrou que o Estado, consequência “de la violência y la religión” é também “una estúpida bravuconada por la violencia” e que, com o desenvolvimento da humanidade desaparecerá, conforme a luta das classes historicamente oprimidas (idem, p. 158). Nesse sentido, a sociedade se reorganizará através da igualdade política, econômica e social, interesses estes distintos do Estado. Vejamos o que Bakunin diz em Deus e o Estado.

hay en la naturaleza misma del Estado algo que provoca la rebelión. El Estado es la autoridad, es la fuerza, es la ostentación y la infatuación de la fuerza. No se insinúa, no procura convertir: y siempre que interviene lo hace de muy mala gana; porque su naturaleza no es persuadir, sino imponer, obligar. Por mucho que se esfuerce por enmascarar esa naturaleza como violador legal de la voluntad de los hombres, como negación permanente de su libertad (BAKUNIN, 1973, p. 96).

O pensamento de Bakunin conflui com o pensamento de Reclus em diversos pontos. Em alguns se distancia, como aconteceu dos intensos debates após a dissolução da I Internacional (e a expulsão de Bakunin e seus próximos no Congresso de Haia da AIT em 1872 e da posterior morte do russo em 1876) e da estruturação do chamado “anarco-comunismo” de Reclus, Malatesta, Carlo Cafiero e Kropotkin.

Como era natural que acontecesse, devido aos intensos debates, ainda no mesmo ano da morte de Bakunin uma nova interpretação do anarquismo vinha se somar ao núcleo relativamente consolidado por ele na Internacional. Em Lausanne, em março, em reunião de internacionalistas e comunalistas, Elisée Reclus reconhecia a novidade do “anarquismo comunista”. (...) Kropotkin, que aparecia nesse momento, juntamente com os trabalhadores do Jura, na Suíça, revelar-se-ia um entusiasta das alterações no pensamento libertário. A nova leitura do anarquismo implicava, em certo sentido, o rearranjo de determinados aspectos da organização da sociedade futura. Como afirmou Nettlau, a antiga concepção de Bakunin, na qual o indivíduo receberia benefícios de acordo com seu trabalho — diferente do comunismo, para o qual tudo deve ser socializado independente do produtor —, seria mantida para os produtos em escassez (SAMIS, 2009, p.7).

Em outros momentos, o essencial do pensamento bakuninista e reclusiano são os mesmos. Podemos ver claramente isso nas suas críticas ao Estado através de suas determinantes fundamentais: exploração e manutenção de um status quo contrário à liberdade. De outro lado, podemos encontrar nos escritos de Reclus exemplos associados aos princípios de Bakunin sobre o Estado, quando o geógrafo anarquista aponta que “a presente função do Estado consiste, em primeiro lugar, em defender os interesses dos proprietários, os ‘direitos do capital’” (...) (RECLUS, 2002, p. 96). Este é um dos parâmetros fundamentais da obra de Reclus e Bakunin. O Estado para ambos, como produto coletivo da classe dominante, se organiza e se fortalece na sociedade capitalista para assegurar a reprodução das relações sociais capitalistas . Dessa maneira, as forças materiais e morais quando à disposição do governo, só uma parcela mínima, por sua condição de classe, recebe as condições úteis à sua manutenção de existência. A imensa maioria se apresenta consumida pela atividade repressiva estatal e ou, desviada de suas utilidades gerais em prejuízo de sua própria classe constituindo seus objetivos em proveito de poucos e em prejuízo da maioria dos seres humanos.

Devemos nesse momento apontar que a perspectiva de Reclus sobre o Estado não é unitária e determinista; ela está relacionada com classes sociais, poder, burocracia, educação, “evolução”, revolução, anarquia, patriotismo, nacionalismo, ciência. O próprio autor aponta que a luta contra o Estado é uma luta contra todas as instituições sociais. Aponta ele que “L’œuvre de critique frondeuse à laquelle est soumis l’État s’exerce également contre toutes les institutions sociales” (RECLUS, s/p, 1894) e sobretudo, contra o capital. Seus disparates contra o capital são fervorosos e diretos. Em A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista lança duras críticas quando afirma:

Sim, se o capital, sustentado por toda a liga dos privilegiados, conserva imutavelmente a força, seremos todos escravos de suas máquinas, simples cartilagens unindo os dentes de ferro às árvores de bronze ou de aço; se às poupanças reunidas nos cofres dos banqueiros acrescentam-se incessantemente novos despojos, administrados por associados responsáveis somente diante de seus livros contábeis, então, seria em vão que apelaríeis à piedade, pois ninguém ouviria vossas lamentações. O tigre pode desviar-se de sua vítima, mas os livros de banco pronunciam sentenças sem apelação; os homens, os povos são esmagados sob esses pesados arquivos, cujas páginas silenciosas contam, em números, a impiedosa obra (RECLUS, 2002, p. 80).

Quando Reclus apresenta a indissociável relação da educação para com a Revolução ele está deixando claro que a formação humana passa por momentos de desenvolvimento do pensamento humano e este deve caminhar para a destruição do capitalismo. Nesse momento, devemos nos atentar ao contexto em que ele escreve para não cairmos em generalizações e estabelecer algumas ressalvas na relação anarquismo e educação.

O anarquismo ainda que tenha diversas estratégias ao longo do seu desenvolvimento, não defendeu apenas o chamado “educacionismo”, mas, “no geral, sempre consideraram a educação e o convencimento estrategicamente fundamentais” (CORRÊA, 2011, p. 45); outras estratégias utilizavam da violência revolucionária. Fundamental é entender o contexto e a maneira segundo a qual os anarquistas pensaram a transformação social. No caso de Élisée Reclus, ele mesmo aponta a necessidade intrínseca ao proletariado de fazer um trabalho de educação que auxiliaria no processo revolucionário, mas nunca descartou a necessidade e a possibilidade do uso de violência como meio estratégico para a revolução social.

Voltando sobre a questão da educação e sua relação com as instituições, Reclus ao criticar a instituição escolar deixa evidente o objetivo desta: a “fundação de uma instituição, ainda que fosse para combater abusos gritantes, implica necessariamente a criação de novos abusos” (RECLUS, 2002, p. 83). Por isso que se torna necessário, o indivíduo como protagonista de sua luta em coletivo, desenvolver sua consciência de classe para superar a burocracia .

Assim, o homem que quer desenvolver-se como ser moral deve defender exatamente o contrario do que lhe recomendam a Igreja e o Estado: ele deve pensar, falar, agir livremente. Estas são as condições indispensáveis de todo o progresso (...) a plena e absoluta liberdade de exprimir seu pensamento em todas as coisas, ciência, política, moral, sem outra reserva alem daquela de seu respeito por outrem (RECLUS, 2002, p. 74-75).

Lutar contra o capital é lutar contra a burocracia. Porém, o Estado se compõe da burocracia e esta reproduz o poder. Para entendermos sua concepção de Estado, devemos saber como se dá o processo de reprodução de poder para o autor. Pensado enquanto “corporativismo” (e isto relacionado na concepção da burocracia, ou seja, na construção dos órgãos do Estado, já que estes sempre foram em detrimento da população) o poder pode vir tanto de um nobre, burguês ou operário, que ambos serão naturalmente perigosos. A burocracia e o poder só podem ser combatidos com a revolução que deve ser entendida como quebra de paradigmas, regulamentos rígidos e na construção de uma sociedade autogerida. Vejamos o que ele disse.

o espírito corporativista entre pessoas que saem diplomadas de uma mesma escola transforma todos os “camaradas”, por mais gentis que sejam, em conspiradores inconsistentes, unidos por seu bem-estar particular e contra o bem público, em predadores que assaltarão os passantes e partilharão o butim (RECLUS, 2002. p. 63).

Ainda,
Em nossas sociedades autoritárias onde as instituições políticas amiúde deram à vontade de um único uma influência preponderante, aconteceu que o capricho de um soberano instalasse cidades em locais onde elas não teriam absolutamente nascido espontaneamente
(RECLUS, 2010d, p. 58).

Sendo assim, não basta tomar o poder, e sim, destruí-lo. Por isso que se torna importante pensar que em uma revolução que almeja a tomada do Estado só constituirá uma nova dominação já que, historicamente, “a conquista do poder foi quase sempre a grande preocupação dos revolucionários, até mesmo dos mais bem-intencionados. (...) e, tão logo haviam derrubado senhores odiados, apressavam-se em substituí-los por outros senhores, destinado, segundo a fórmula sagrada, a “fazer a felicidade de seu povo” (RECLUS, 2011a, p. 23). Vejamos o que o anarquista francês aponta na palestra Anarquia proferida em 18 junho de 1894 em Bruxelas, capital da Bélgica.

C’est là ce que nous répétons sans cesse à nos frères, - parfois des frères ennemis - les socialistes d’État : "Prenez garde à vos chefs et mandataires ! Comme vous, certainement, ils sont animés des plus nobles intentions ; ils veulent ardemment la suppression de la propriété privée et de l’État tyrannique ; mais les relations, les conditions nouvelles les modifient peu à peu ; leur morale change avec leurs intérêts, et, se croyant toujours fidèles à la cause de leurs mandants, ils deviennent forcément infidèles. Eux aussi, détenteurs du pouvoir, devront se servir des instruments du pouvoir : armée, moralistes, magistrats, policiers et mouchards. Depuis plus de trois mille ans, le poète hindou du Mahâ Bhârata a formulé sur ce sujet l’expérience des siècles : "L’homme qui roule dans un char ne sera jamais l’ami de l’homme qui marche à pied !" (RECLUS, 1894, s/p).

Assim, outro elemento importante quando se diz de uma sociedade radicalmente diferente condiz em pensar no patriotismo. A conjuntura social no qual viveu Reclus (o século XIX e o princípio do século XX) é bastante fértil na força do nacionalismo e do patriotismo. Mas de toda forma, esse elemento se relaciona com a manutenção da sociedade de classes, pois todo patriotismo está a favor da classe dirigente no momento em que eleva disparidades mal intencionadas entre indivíduos da mesma classe social potencializando a diversidade entre nacionalidades diferentes.

(...) o que foi convencionado chamar de patriotismo não é senão uma regressão sob todos os pontos de vista. É preciso ser ingênuo entre os ingênuos para ignorar que os “catecismo do cidadão” pregam o amor pela pátria para servir o conjunto dos interesses e dos privilégios da classe dirigente, e que eles procuram manter, em proveito dessa classe, o ódio, de fronteira a fronteira, entre os fracos e deserdados. Sob a palavra patriotismo e sob os comentários modernos com que a cercam, disfarçam as velhas práticas de obediência servil à vontade de um chefe, a completa abdicação do indivíduo diante das pessoas que detêm o poder e querem servir-se de toda a nação como de uma força cega (RECLUS, 2002, p. 65).

A superação de tais noções (patriotismo e nacionalismo) deve ser combatida e um desses elementos de ruptura é a educação. Porém, não é toda ou qualquer perspectiva de educação. O desenvolvimento do pensamento humano que se realizou, conforme Reclus (2002), de forma mais ou menos rapidamente, segundo os indivíduos, as classes e as nações, trouxe a situação falsa e contraditória do ensino educacional. Edificou-se no capitalismo uma educação moralista e metafísica que só colabora com a manutenção do status quo. A educação ou “instrução” não se dá apenas na escola. Se fosse assim, “Os governos e as igrejas poderiam esperar manter ainda os espíritos na servidão, mas é fora da escola que mais se instrui, na rua, na oficina, diante das barracas de feira, no teatro, nos vagões dos trens, nos barcos a vapor (...)” (RECLUS, 2002, p. 107).

No âmbito educacional também se torna importante discutir a questão das classes sociais. A relação entre as classes sociais e a diferente instrução que cada classe recebe é ponto determinante para se pensar em que forma a educação na sociedade regida pelo capitalismo está formada: ela está fundamentada nos interesses de classes . A instrução passada por classes sociais é fragmentada e restringida.

Assim, sem nenhum paradoxo, o povo – ou pelo menos a parcela do povo que tem a possibilidade de pensar – sabe, normalmente muito mais do que a maioria dos doutos, e isso sem ter passado pelas universidades; ele não conhece os detalhes ao infinito, nas é iniciado nas mil fórmulas do alfarrábio; não tem a cabeça repleta de nomes em todas as línguas, como um catálogo de biblioteca, mas seu horizonte é mais amplo, ele vê mais longe, de um lado, nas origens bárbaras, do outro, no futuro transformado;(idem, p. 110).

É assim que os privilégios que a burguesia detém se tornam passíveis de crítica e de destruição. Os progressos da ciência ao longo do tempo apontam para as principais necessidades de conhecimento que um revolucionário deve ter, superando-as, e assim constituindo o “ideal da sociedade futura” (Reclus, 2002) de agir e pensar livremente. Pensar e agir livremente em sociedade seriam então, a forma de edificação de uma sociedade radicalmente diferente. Vejamos duas citações de Reclus:

Queremos saber. Não admitimos que a ciência seja um privilégio, e que homens situados no cume de uma montanha, como Moisés, num trono, como o estoico Marco Aurélio, num Olimpo ou num Parnaso de papelão, ou simplesmente numa cadeira acadêmica, ditem-nos leis, vangloriando-se de um conhecimento superior das leis eternas. (...) Não aceitamos verdade promulgada: fazemo-la nossa, antes de mais nada, pelo estudo e pela discussão, e aprendemos a rejeitar o erro, tivesse ele mil selos de garantia e certificados (RECLUS, 2002, p. 51).

Ainda em La Société Nouvelle, de 31 de outubro de 1889:

Mais, si nous sommes anarchistes, les ennemis de tout maître, nous sommes aussi communistes internationaux, car nous comprenons que la vie est impossible sans groupement social. Isolés, nous ne pouvons rien, tandis que par l’union intime nous pouvons transformer le monde (RECLUS, 1889, s/p).

Para Reclus a relação entre ciência e privilégio é bastante nítida, sendo que tais privilégios são de uma determinada classe social que detém meios de expropriação, sendo aqui, a burguesia na apropriação do saber. Por isso que toda a ciência desenvolvida vai estar a serviço do capital e do Estado, isto é, da exploração e da dominação. Torna-se necessário ir ao cerne da dominação, ou seja, no capital, no Estado e na sociedade de classes.

Outro elemento fundamental a ser discutido é a ciência e seus progressos. A ciência, através de um conjunto de ideias, práticas e instituições indica os caminhos mais prósperos para a classe dominante. O conhecimento produzido pelo julgo da exploração é expropriado das classes exploradas e é organizado em sistemas fundamentados em métodos e técnicas que asseguram o seu controle, por exemplo, a escola. Assim, essa instituição, com seus objetivos, apresentam os resultados dos processos de conhecimento efetuados e beneficiam fundamentalmente as classes dominantes.

Ainda sobre o papel da ciência e de seus ideólogos, Reclus traz críticas aos teóricos do Estado.

Assim, o que quer que digam os teóricos que veem no Estado uma espécie de entidade independente dos homens, a história mostra-nos da maneira mais evidente que o governo apresenta-se ainda para muitos sob sua forma mais primitiva da violência, aquela do açambarcamento, do capricho, e que o representante por excelência do Estado, isto é, o soberano, dá-lhe forçosamente a direção que provém da resultante de suas paixões e de seus interesses (RECLUS, 2010e, p. 25).

Assim, a ciência e seus progressos não é necessariamente uma evolução. A noção de “evolução humana” para ele passava fundamentalmente por grandes momentos de rupturas e transformações (RECLUS, 2002, p. 114). A confusão entre o termo evolução para os positivistas e para Reclus merece um retorno para um esclarecimento, já que a concepção de Reclus é revolucionária e a dos positivistas está no campo do conservadorismo da lógica opressora. Para desmistificarmos tal relação devemos dizer que o conceito de evolução é intrínseco ao conceito de revolução.

Tentando deixar claro essa concepção, Reclus aponta que “evolução” é,

(...) sinônimo de desenvolvimento gradual, contínuo, nas idéias e nos costumes, é apresentada como se fosse o contrário dessa assustadora, a Revolução, que implica mudanças mais ou menos bruscas na realidade. É com um entusiasmo aparente, ou mesmo sincero, que discorrem sobre a evolução, sobre os progressos lentos que se realizam nas células cerebrais, no segredo das inteligências e dos corações; mas que não lhes falem da abominável revolução, que escapa repentinamente dos espíritos para eclodir nas ruas, acompanhada, às vezes, por gritos da multidão e pelo estrépito das armas (RECLUS, 2002, p.29).

A questão da anarquia para Reclus vem imbuída de um olhar cientificista em que o mundo aparece de acordo com a necessidade de uma lei universal de evolução. Sendo assim, para o próprio anarquista francês, o anarquismo é parte fundamental da própria evolução natural do mundo como finalidade do progresso humano. Sendo assim, o ideal de “evolução” do qual fala Reclus não deve ser confundido com a evolução dos positivistas e hegelianos. Para Reclus, a “evolução é o movimento infinito de tudo o que existe, a transformação incessante do Universo e de todas as suas partes desde as origens eternas e durante o infinito dos tempos” (RECLUS, 2002, p.21).

A evolução não assume a forma de um ciclo, conquanto Reclus também admita a existência deste; ele não é unilinear, pois também há retrocessos, todavia, no total, assume a forma de um espiral em consequência dessa complexidade (CREAGH, 2010b, p. 19).

Porém, o caráter revolucionário dessa evolução reside quando notamos que, a “evolução” toma um caráter de contraditoriedade (relação própria da necessidade revolucionária da concepção dialética da história), já que,

cada uma de suas evoluções realiza-se por um deslocamento de forças para um novo ponto. O movimento geral da vida de cada ser, em particular, e em cada série de seres não nos mostra em lugar nenhum uma continuidade direta, mas sempre uma sucessão indireta, revolucionária, por assim dizer. Um ramo não se acrescenta ao comprimento de outro ramo. A flor não é o prolongamento da folha, nem o pistilo do estame, e o ovário diferem dos órgãos que lhe deram origem (RECLUS, 2002, p. 27).
Estes evolucionistas acima criticados como positivistas só querem conservar a sociedade privilegiada já que “é uma quimera esperar que a Anarquia, ideal humano, possa emanar da República” (RECLUS, 2002, p. 83). Para tal efeito de conservação ligam-se aos dogmas sendo estes a peça fundamental de organização e princípios, por exemplo, o Estado e a Igreja. Devemos ver o que Reclus entende por Igreja para que possamos apontar mais um elemento da sua concepção multideterminante de Estado através do seu entendimento de Revolução (perspectiva que é indissociável para a destruição do Estado).

Quando em carta para sua mãe escrita em Berlim no ano de 1851, o francês havia declarado sua vontade e algumas de suas discordâncias em relação ao sacerdócio, por exemplo, quando afirmara que acreditava que um dia “entre os homens não haverá nada além de influências recíprocas” (RECLUS, 2002, p. 11). Porém, posteriormente, ele aponta com mais ênfase e profundidade, em "L’Anarchie et l’Église" , com seu irmão Paul Reclus algumas questões mais importantes para livrar os indivíduos das “loucuras da cruz”.

Nous repoussons absolument la doctrine catholique, de même que celle de toutes les religions connexes, amies ou ennemies ; nous combattons leurs institutions et leurs oeuvres ; nous travaillons à détruire les effets de tous leurs actes. Mais cela sans haine de leurs personnes, car nous n’ignorons point que tous les hommes sont déterminés par le milieu dans lequel leurs mères les ont bercés et la société les a nourris ; nous savons qu’une autre éducation, des circonstances moins favorables auraient pu nous abêtir aussi, et ce que nous cherchons par dessus tout, c’est précisément de faire naître pour eux, - s’il en est encore temps - et pour toutes les générations à venir, des conditions nouvelles qui guériront enfin les hommes de la " folie de la croix " et autres hallucinations religieuses (RECLUS; RECLUS, 1900, p. 159).

Além dos pretextos de manutenção do status quo, o Estado também é o responsável pelos males, massacres históricos, já que, financiando guerras realça seu poder econômico, político e social. Seu real objetivo é realçar as diferenças entre nações para potencializar as relações conflituosas entre os indivíduos e não entre as classes.

(...) o apelo à vingança ainda ressoa, e, quando a nova guerra tiver passado como um incêndio, devorando tudo com sua terrível chama, ela deixará servir de fermento para futuros conflitos. Quantos exemplos poderíamos citar de tais derivativos! Ás dificuldades internas do governo, os detentores do poder respondem por guerras externas. Se essas guerras forem triunfantes, os senhores não deixarão de aproveitar-se delas para a consolidação de seu regime: eles terão aviltado seu povo pela loucura da vaidade denominada glória; (...) (RECLUS, 2010e, p. 38).

Entretanto, “além da guerra, os governantes têm à sua disposição poderosos meios de afastar deles todo perigo (do povo)” (RECLUS, 2010e, p. 40). Historicamente, em diversos momentos, podemos perceber isso. Vejamos duas. A primeira é a corrupção. Essa relação social é marcada pela competição do poder dentro do Estado fazendo a aceitação do indivíduo que está submetida a ela para a manutenção de “almas de serviçais” que “recompensam-se aceitando a opressão” (RECLUS, 2010e, p. 40). A corrupção deve ser compreendida historicamente e socialmente pelo motivo fundamental de que ela tem raízes sociais mais profundas do que meramente os indivíduos de forma isolada que a compõe. A corrupção é algo intrínseco à sociedade capitalista e está generalizada em todos os governos. A segunda e não menos importante, são as leis. A lei tem por efeito imediato o amortecimento da luta de classes. Nesse sentido,

Adormecer em seu triunfo momentâneo aqueles que a editaram, retirar dos indivíduos zelosos a energia pessoal que os havia animado em sua obra vitoriosa de transferi-la a outros, aos legisladores de ofício, aos conservadores, isto é, aos próprios inimigos de toda mudança progressiva (RECLUS, 2010e, p. 43).

A criação de uma lei é a criação de novos privilégios, por mais que superficialmente ela possa estar a favor de classes exploradas, porém, ela é fundamentada na concepção de uma instituição. Na maneira em que “uma instituição é fundada”, também é fundada a maneira pela qual o indivíduo “deve adaptar-se aos meio perniciosos e, para funcionar, necessita agir de modo patológico” (RECLUS, 2010e, p. 44). Nada mais claro quando o autor diz que “(...) as leis, representam sempre os interesses exclusivos da classe dirigente” (RECLUS, 2010e, p. 28).

A lei se torna então a materialização da iniquidade. Vejamos a seguinte exposição de Reclus no prefácio de A Conquista do Pão de Piotr Kropotkin:

Bem sabem eles que a lei é iníqua e mentirosa, que os magistrados são defensores dos fortes e tiranos dos fracos, que a conduta regular da vida e a probidade do trabalho nem sempre são recompensadas pela certeza de ter um bocado de pão garantido, e que a imprudência cínica do agiota e a crueldade insensível do penhorista são melhores armas e de resultados mais eficazes para a “conquista do pão” do que todas as virtudes e a honestidade de carácter (RECLUS, apud KROPOTKINE, 1975, p. 15).

A luta contra o Estado nada mais é que a uma luta ampla com demais setores da sociedade propondo a abolição de outras relações sociais, já que a autoridade (na família, no Estado, na Educação, na Igreja, na Ciência, no trabalho, etc.) está presente de forma central e contraditória: “O fato brutal da autoridade persiste contra o direito, simultaneamente na família, na sociedade, no Estado; ele persiste, mas admitindo seu contrário, mesclando-se com ele em mil combinações ilógicas e bizarras” (RECLUS, 2010e, p. 16).

Além da autoridade, existe o papel do indivíduo e sua prática para a ação revolucionária. No texto Èlisée Reclus Fala aos Jovens publicado após sua morte no periódico anarquista Ação Direta do Rio de Janeiro , ele diz:

Que devemos fazer então para mantermo-nos em estado de vigor intelectual, de atividade moral e de fé no bom combate? Dirigi-vos a mim, porque supondes que tenho experiência dos homens e das coisas. Pois bem, em minha qualidade de ancião, me dirijo aos jovens para dizer-lhes: Fora as querelas e personalismos. Escutai os argumentos contrários depois de haver expostos os vossos; sabei calar e refletir; não procureis ter razão em detrimento da vossa sinceridade. Estudai com discernimento e perseverança. O entusiasmo e a abnegação, ainda que até a morte, não são o único meio de servir a causa. É fácil dar a vida; nem sempre fácil conduzirmo-nos de modo que nossa vida sirva de exemplo. O revolucionário consciente não é somente homem de sentimento, é também homem de raciocínio, cujos esforços totais em procura de maior justiça e solidariedade se apóiam sobre conhecimentos exatos e sintéticos de história, sociologia, biologia. É o que pode, por assim dizer, incorporar suas ideias pessoais ao conjunto genérico das ciências humanas e enfrentar a luta sustentada pela imensa força que esgotará em seus conhecimentos.

Seu conceito de “autoridade” pode ser identificado quando ele compara a propriedade e a autoridade. Vejamos o que ele diz:

Assim como a propriedade é o direito de usar e abusar, do mesmo modo a autoridade é o direito de comandar a torto e a direito. É assim que entendem os senhores, e é igualmente assim que compreendem os governados, seja porque obedecem servilmente, seja porque sentem o espírito de revolta despertar neles (RECLUS, 2010e, p.19 - 20).

Pensando nessa múltiplas facetas do Estado, o geógrafo anarquista em suas obras também analisa a forma que a sociedade se organiza onde os conflitos urbanos e a forma organizacional da cidade é também um do foco de manifestação da arbitrariedade da sociedade capitalista. Em busca de uma “solução para a cidade”, ressalta Pelletier, que somente uma revolução social poderá marcar o fim da desigualdade citadina :

Qual é a solução? A resposta de Élisée Reclus é implícita: a supressão da desigualdade, da hostilidade que separa em dois o corpo social, supressão realizável, diz-nos Reclus em seus textos mais expressamente políticos, pela Revolução Social que tem por finalidade o comunismo libertário, proposição que ele elaborou com os anarquistas Cafiero, Kropotkin e outros mais (PELLETIER, 2010d, p. 27).

Pensando assim, na sociedade capitalista a cidade só tende a reproduzir suas bases pilares, já que o “espaço era simultaneamente um reflexo da sociedade, uma aposta social, um quadro de realização das relações sociais e um fator influindo na sociedade” (BOINO, 2010c, p. 16).

Não é sem sentido que, em confluência geral com Reclus, Jacinto Cinazo escreveu que o Estado é “guardião feroz, insaciável, violento, implacável, de todos os privilégios e monopólio que impedem os trabalhadores de terem livre acesso aos meios de produção e ao gôzo dos benefícios da riqueza social (...)” .

Para finalizar, entendemos que ao pensar o Estado criticando-o e propondo o seu fim, vem à tona a dura realidade que Orwell apontou em 1984: a crítica ao Estado em nossa sociedade, marcada pela naturalização das relações sociais, é algo marginal e pouco difundido, mas acredito que “o curioso é que, na ocasião, no sonho, as palavras não o haviam impressionado, maiormente. Somente mais tarde, e aos poucos, é que tinham ganhado em significação”.

Reclus não conheceu o tamanho desenvolvimento do capitalismo e do Estado como nos chega aos dias atuais; mas como próprio militante e da rica atualidade de sua análise, reconheceu o fundamental da instituição inimiga voraz da liberdade. Não menos libertário e anarquista, o francês aponta, com claras intenções e significações contrárias à lógica hegemônica que, se o capital “vencesse, (...) a humanidade teria deixado de viver” (RECLUS, 2002, p. 80).


Referências Bibliográficas

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VIANA, Nildo. Capitalismo, Burocracia e Autogestão. BMC - Boletim do Movimento Conselhista. Ano 01, num. 04. Goiânia: maio de 1995.


Notas:

1 - De acordo com Max Nettlau em La Anarquia Através de los Tiempos, a vida de Élisée Reclus pode ser conhecida íntimamente por sus recuerdos sobre su hermano, Elías Reclus, (1827 - 1904 París, 32 págs.; 1905) y por su Correspondance (3 v. París, 1911 - 1925). He relatado su vida en Elisée Reclus. Anarchist und Gelehrter (1830 - 1905), Berlín, Der Syndikalist, 1928, 344 págs.; trad. española aumentada, Eliseo Reclus. La vida de un sabio justo y rebelde (Barcelona, 1928, Bca. de La Revista Blanca, 2 vol., 294, 312 págs.). Una hermosa colección de testimonios de muchos amigos de los hermanos Reclus fue publicada en 1927 por Joseph Ishill - el libro Elisée and Elie Reclus - inmemoriam (Berkeley Heights. New Jersey). Outras obras em português também tratam de sua biografia. Em especial: ANDRADE, Manuel Correia de. (org.) Élisée Reclus. São Paulo: Editora Ática, 1985; GIL-JURADO, Carlos José. Reclus: un geógrafo incómodo, una geografía de compromiso. GeoTrópico, vol. 3, Pamplona, 2005. Disponível em: www.geotropico.org/3_1_Gil.html.

2 - Entendo que a construção da produção social do espaço que Reclus aponta é ofuscado por leituras apressadas do conceito de “evolução” desenvolvido pelo autor, porém, entendemos de forma contrária esse conceito que foi desenvolvido ao longo do texto cf. MATEUS, J.G.F. Élisée Reclus e o anarquismo: uma critica da educação no capitalismo. In: _______. Educação e Anarquismo: uma perspectiva libertária. Rio de Janeiro: Rizoma Editorial, 2012.

3 - Podemos destacar as participações de Reclus na AIT de 1864, na Federação Jurassiana onde congregava todas as federações opositoras aos marxistas no qual, foi criada em 1871 por anarquistas dissidentes da AIT. Fora militante durante a Comuna de Paris de 1871 juntamente com seu irmão Éliée além ter ingressado em organizações como a Liga da Paz e da Liberdade além de ter colaborado com o jornal Le Révolté.

4 - A compreensão da geografia enquanto ciência pode ser compreendida na passagem que selecionamos abaixo. Porém, devemos situar Reclus no tempo e no espaço, sabendo que em seu período o olhar cientificista era predominante entre os intelectuais, por isso, devemos ler com atenção para não confundirmos Reclus com a perspectiva de La Blache ou Ratzel. “A ciência, ao estudo da qual vos convido, é bem diferente. Certamente alojareis em vossa memória milhares e talvez milhões de fatos, mas vós os classificarei, vós os unireis em um corpo de conhecimentos refletido e justificado por uma preocupação mais elevada do que aquela dos nomes e dos números. A geografia, que não é absolutamente uma ciência em su mesma, liga-se a todas as ciências e serve-lhes de sólido ponto de apoio, de reservatório infinito para a produção de fatos” (RECLUS, 2010c, p. 77).

5 - L'évolution, la révolution et l'ideal anarchique, publicada no ano de1897.

6 - NETTLAU, Max. História da anarquia: das origens ao anarco-comunismo. São Paulo: Hedra, 2008.
Deixemos claro que a nossa percepção e concepção de Estado reside na sua relação com as classes e não com os indivíduos deslocados de suas condições de classe, sendo assim, o Estado não está como uma instituição privada, mas nele está expresso em suas ações, os interesses das classes dominantes.

7 - Tradução nossa: “O trabalho da rebelde crítica colocada sobre o estado também é contra todas as instituições sociais”.

8 - Para Reclus existe uma educação moral associada à luta do proletariado. Esta educação em seus escritos não deixou de conter uma crítica anarquista para o desenvolvimento de uma luta radical e revolucionária sobre a sociedade de classes e a vida sob a tutela anti-humana do Estado.

9 - Concordando com o sociólogo Nildo Viana, entendemos que a burocracia se compõe na relação de dirigentes e dirigidos. Diz o autor: “O capitalismo realiza uma expansão da divisão social do trabalho numa escala nunca vista antes na história da humanidade. Neste processo de expansão cria-se várias classes sociais, sendo a burguesia e o proletariado as duas classes fundamentais deste modo de produção. A burguesia, para combater as classes exploradas cria a sua principal classe auxiliar: a burocracia (também chamada de ”tecnocracia” e de “classe dos gestores”). Portanto, o capitalismo cria como seu produto mais genuíno as seguintes classes: a burguesia, o proletariado e a burocracia” (VIANA, 1995, p.1).
10 - Tradução nossa: “Isto é o que ficam dizendo aos nossos irmãos - irmãos às vezes inimigos - o estado socialista:! "Olhai para seus líderes e agentes mandatários! Como você, certamente, eles são animados por intenções nobres, eles querem ardentemente a supressão da propriedade privada e da tirania do estado, mas as relações, as novas condições de mudar gradualmente, suas mudanças morais com os seus interesses, e, acreditando sempre fiel à causa de seus eleitores, eles se tornam necessariamente infiéis. Eles também, que está no poder, vai usar os instrumentos de poder: Exército, moralistas, magistrados, polícias e espiões. Por mais de três mil anos, o Maha Bharata Hindu poeta fez esta experiência de séculos "O homem que dirige um carro nunca será um amigo do homem andando!".
11 - Para uma análise minuciosa e libertária das relações educacionais entre as classes, cf. TRAGTENBERG, Maurício. Sobre educação, política e sindicalismo. 3ª edição, São Paulo: Editora UNESP, 2004.

12 - Tradução nossa: “Mas se somos anarquistas, inimigos de qualquer mestre, também somos comunistas internacionais porque entendemos que a vida é impossível sem agrupamento social. Isolado, não podemos fazer nada, enquanto a íntima união que pode transformar o mundo”.
13 - Relatório do Congresso Revolucionário Internacional dos Trabalhadores em Paris no ano de 1900. Cf; RECLUS, Élisée; RECLUS, Paul. L’Anarchie et l’Église. Suplemento literário de "Novos Tempos", vol. III(no. 19-20), p. 158-161. Disponível em: http://raforum.info/reclus/spip.php?article19&lang=fr.

14 - Tradução nossa: “Nós rejeitamos absolutamente a doutrina católica, assim como todos a outras religiões amigas, relacionadas ou inimigos, combatemos suas instituições e seus trabalhos, e estamos trabalhando para destruir todos os efeitos de suas ações. Mas, sem o ódio do seu povo, porque não sabemos o ponto de que todos os homens são determinados pelo ambiente em que suas mães abalaram a sociedade e os alimentou, e nós sabemos que a educação, as circunstâncias menos favoráveis que temos também estultificar, e o que buscamos, acima de tudo, é precisamente para dar a luz a eles - se ainda houver tempo - e para todas as gerações que virão, novas condições finalmente curar homens a "loucura da cruz" e outras alucinações religiosas.”
15 - Periódico Ação Direta, Outubro e Novembro de 1952, nº83, ano 6, p. 3.
16 - Disparando duras críticas às grandes cidades de sua época, Reclus dirá: “Enfim, é nas cidades, sobretudo naquelas que são mais célebres por sua opulência e sua civilização, que decerto se encontram os mais degradados de todos os homens, pobres seres sem esperança que a sujidade, a fome, a ignorância brutal, o desprezo de todos, puseram bem abaixo do feliz selvagem percorrendo em liberdade as florestas e as montanhas” (RECLUS, 2010b, p. 83).

17 - Cf. CINAZO, Jacinto. Elementos Fundamentais da Sociedade Capitalista – O Estado. In: LEUENROTH, Edgard. Anarquismo: roteiro da libertação social. Antologia de doutrina crítica-histórica-informações. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1963.

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