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Teoria, Ideologia e Prática política: a Praxis Anarquista

category brazil/guyana/suriname/fguiana | a esquerda | debate author Monday November 19, 2012 20:35author by Rafael V. da Silva - Federação Anarquista do Rio de Janeiro Report this post to the editors

Este texto é uma versão adaptada do artigo Praxis Anarquista: Teoria, Alienação e Autonomia, publicado no site Passapalavra e que fora ligeiramente modificado, revisado e corrigido. Para facilitar a leitura, separamos as duas partes do artigo. Essa separação foi realizada sob a compreensão de que as duas partes do texto podem ser lidas de maneira independente sem prejúizo para o entendimento de seus argumentos.
Praxis: teoria, ideologia e prática política.
Praxis: teoria, ideologia e prática política.

Com relação ao conhecimento- Visto que o ser não se revela a si mesmo senão em dois momentos indissoluvelmente ligados [...]; que a realidade de um exige essencialmente a presença do outro; que é tão absurdo isolá-los como tentar reduzi-los, porque, nos dois casos, é negar a verdade inteira e suprimir a ciência, concluiremos primeiramente que a característica da ciência é invencivelmente esta: acordo entre a razão e a experiência.
(P-J Proudhon)

A ciência não cria nada, ela só constata e reconhece as criações da vida. E sempre que os homens da ciência, saindo do seu mundo abstracto, se ocupam da criação viva no mundo real, tudo o que propõem ou criam é pobre e ridiculamente abstracto, sem sangue nem vida, morrendo à nascença, semelhante ao homunculus criado por Wagner, o discípulo pedante do imortal doutor Fausto. Disto resulta que a única missão da ciência é esclarecer a vida e não governá-la.
(Mikhail Bakunin)

É preciso alertar, que o esforço teórico em desenvolver conceitos libertários não se propõe a dar conta de toda a realidade, o que de fato, acredito ser impossível, não por uma “deficiência temporária do saber” (CASTORIADIS, 1986: 96), mas porque não podemos jamais reduzir o real a uma ordem racional pré-constituída. O real não é um “artefato estável, limitado e morto” (ibid). Esta percepção sobre o real, enquanto um espaço de vida, e que, portanto, escapa incansavelmente a teoria, fora muito bem compreendida por grande parte dos anarquistas [1]; a ciência, dizia Bakunin, “só trabalha com sombras... A realidade viva escapa-lhe, e só se mostra à vida” (BAKUNIN, 1975: 42). Este fato, nunca fez com que os anarquistas rejeitassem os esforços teóricos, mas compreendessem que a modificação da realidade não passa pela proposta da teoria total, que tudo abarcaria; que tudo compreenderia. A ciência inclui o pensamento da realidade, não a realidade em si mesma; o pensamento da vida, não a vida...” (Idem: 44).

A proposta da teoria total é uma quimera, mas isto não significa que devemos abandonar [2] o esforço teórico, e muito menos a prática política. Isto porque a prática política, no que diz respeito aos anarquistas visa transformação [3] , e toda transformação também supõe elucidação e compreensão da realidade; portanto, prática e teoria, só podem ser compreendidas numa relação completamente indissociável, é o que se pode chamar de praxis.

“Chamamos de praxis este fazer, no qual o outro ou os outros são visados como seres autônomos e considerados como o agente essencial do desenvolvimento de sua própria autonomia.” (CASTORIADIS, 1986: 94)

A praxis supõe um saber e um fazer que visem autonomia. Sobre este fazer em sua forma específica, atribuo o sinônimo prática política, que apesar de não precisar de uma teoria total, se, se pretende eficaz necessita sim, de uma atividade teórica. Ambas, atividade teórica e prática política estão intimamente relacionadas e na práxis se articulam. Concordo com Castoriadis quando afirma que “A teoria como tal é um fazer, a tentativa sempre incerta de realizar o projeto de uma elucidação do mundo” (CASTORIADIS, 1986: 93), ressalta o caráter sempre provisório da teoria e que deste modo, reconhece suas limitações. Do ponto de vista anarquista:

“O nosso Cristo distingue-se do Cristo protestante e cristão no seguinte: este último é um ser pessoal e o nosso é impessoal; o Cristo cristão, já realizado num passado eterno, apresenta-se como um ser perfeito, enquanto que a realização e a perfeição do nosso Cristo, da ciência, dar-se-á no futuro: o que equivale a dizer que nunca se realizará.
[...]
O nosso Cristo ficará pois eternamente incompleto, o que deve abater muito o orgulho dos seus representantes creditados entre nós.”
(BAKUNIN, 1975: 57-58)

“Na ciência, as teorias, sempre hipotéticas e provisórias, constituem um meio cômodo para reagrupar e vincular fatos conhecidos, e um instrumento útil para a investigação, o descobrimento e a interpretação de fatos novos: mais não são a verdade.”
(Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Umanitá Nova, 27 de abril de 1922. In: RICHARDS, 2007: 39.)
[...]
“Eu não creio na infabilidade da ciência, nem em sua capacidade de explicar tudo, nem em sua missão de regular a conduta de homens, como não creio na infabilidade do Papa [...]. Eu só acredito nas coisas que podem se provar; mais sei muito bem que as provas são algo relativo e podem superar-se e anular-se continuamente mediante outros fatos provados [...]” [4]
(Ibid. Excerto de Pensiero e Volontá, 15 de setembro de 1924. In: RICHARDS, 2007: 40.)

Assim sendo, é importante também não ir a outro extremo e negar a produção de quaisquer esforços teóricos, como se estes de nada servissem; isto de fato, é ignorar que toda alteração da realidade, também pressupõe certa elucidação. A lente “ideológica” não é suficiente para interpretar e analisar a realidade, o que facilmente redundaria numa atitude purista, que rapidamente cairia num maniqueísmo de feições pouco enriquecedoras à atividade política. Ainda que a elucidação teórica da realidade não determine a ação consciente, ela pode ajudar a orientá-la, o que é fundamental para quaisquer projetos que se pretendam de longo prazo, como é o caso da estratégia anarquista de transformação social.

“Para entender o que acontece (a conjuntura) é preciso poder pensar corretamente. Pensar corretamente significa ordenar e tratar adequadamente os dados que se produzem, em quantidade, sobre a realidade.
Pensar corretamente é a condição indispensável para analisar corretamente o que acontece em um país em um momento dado da História desse país ou de qualquer outro. Isso exige instrumentos. Esses instrumentos são os conceitos. Para pensar com coerência é necessário um conjunto de conceitos coerentemente articulados entre si. Se exige um sistema de conceitos, uma teoria.” (FAU. Huerta Grande: a Importância da Teoria.)

A importância da teoria, ou já utilizando o conceito aqui desenvolvido, da atividade teórica, está em fornecer instrumentos adequados, mesmo que estejamos cientes de sua incerteza, e, portanto, que saibamos conscientemente que ela é provisória para a ação política em determinado contexto sócio-histórico. É provisória, mas não incoerente, pois possui seu grau de organização. “Que não haja um saber rigoroso sobre a sociedade não quer dizer que não haja nenhum saber sobre a sociedade, que se possa dizer qualquer coisa, que tudo valha”. (CASTORIADIS in VOLKER, 1981: 97). A atividade teórica é aberta, mas não relativista por “princípio”; relativizo algo para chegar a algum lugar, destruo algo para construir outra coisa em seu lugar: é o princípio do pensamento aberto.

“O pensamento avança na interrogação sendo a cada vez obrigado a manter provisoriamente um certo número de coisas, mesmo que seja para recolocá-las em questão em um segundo movimento. Um pensamento livre ou aberto é aquele que realiza esse movimento; não é uma liberdade pura, um raio que atravessa o vazio, uma luz que se propaga através do éter, é uma marcha que a cada vez tem que se apoiar em alguma coisa, tem que orientar-se tanto pelo que não é ela própria, quanto pelos ‘resultados’ precedentes – mas que pode voltar-se sobre si mesma, ver-se rediscutir seus pensamentos, etc.”
(ibid: 81).

O fato de não intentar esgotar a totalidade do real em esquemas racionais não significa afirmar que a atividade teórica esteja completamente desligada dos problemas globais da sociedade e nem que se furte de pensá-los enquanto uma totalidade, ou seja, enquanto um conjunto da sociedade instituída; já que ela própria (a atividade teórica) está inserida neste conjunto. Condenamos um “saber globalizado, no sentido de um saber total ou absoluto” [5] que se propõe um sistema, mas

“Um pensamento filosófico é um pensamento que necessariamente visa o todo de seu objeto. Renunciar à ilusão do “sistema” não significa renunciar a pensar o ser, ou o conhecimento por exemplo. [..]
Visar o conjunto é indispensável quando se pensa a sociedade; é isto o que constitui esse pensamento. E o mesmo vale quando pensamos a sociedade segundo uma perspectiva política e não de um ponto de vista teórico. O problema político é o da instituição global da sociedade.
[...]
Temos de ultrapassar a oposição entre a ilusão de um saber global sobre a sociedade e a ilusão de que poderíamos nos contentar com uma série de disciplinas especializadas e fragmentárias. O que deve ser destruído é o próprio terreno sobre o qual se ergue essa posição.”
(CASTORIADIS, 1987: 252-253.)

Quanto mais conectada a prática, mais “realista”, e deste modo, útil e adequada é a teoria. Quanto mais afastada de uma experiência concreta coletiva, torna-se mais exótica e incompreensível, assumindo conseqüentemente feições que permanecem no campo do abstrato, inviabilizando uma análise lúcida da realidade, ou redundando na iconoclastia pela iconoclastia [6] .

A atividade teórica, portanto, alimenta e é alimentada pela prática, constituindo-a, e sendo por esta constituída: “Elucidação e transformação do real progridem, na praxis, num condicionamento recíproco” (CASTORIADIS, 1986: 95). As modificações teóricas e as correções das análises são, portanto, constantemente modificadas pela prática política, porque a última instância da praxis é justamente a transformação daquilo que é dado, a transformação do real: “Para teorizar com eficácia é imprescindível atuar [7] ” (FAU, op. cit.). Se o real é modificado constantemente pela atividade política, obviamente a teoria deverá se ajustar e permitir-se modificações. Oxigenando-a, possibilitamos que a atividade teórica seja um instrumento cada vez mais propositivo para a intervenção concreta na realidade.

O problema da teoria no movimento revolucionário se deu quando houve a transformação da atividade teórica em sistema teórico, especificamente pela fantasia do saber absoluto e da teoria total, que dominou a tradição marxista. Utilizo o termo sistema não no sentido utilizado pela FAU, como um conjunto mais ou menos coerente de quadros conceituais, mas sim, no que diz respeito a uma teoria que pretende dar conta, ou esgotar a totalidade do real. Portanto, reafirmamos que ao não propor tornar-se um sistema, mas uma atividade, a atividade teórica pretende fornecer possibilidades de elucidação, mas não dar respostas prévias ou definitivas àqueles elementos que só podem ser dados (emergir) pela praxis e por sua criação histórica. As especificidades das revoluções ocorridas na histórica comprovam que a experiência da classe trabalhadora enquanto projeto radical trouxe elementos novos que não podiam ser previstos e acabaram sendo incorporados à teoria. Podemos utilizar a teoria para elucidar estes projetos, dar sentido a estes, ou, (inclusive sentido para a ação contemporânea) organizá-los num quadro conceitual coerente, mas jamais “explicá-los”, ou reduzi-los a algum grau de determinação.

Quando somos confrontados com a experiência dos zapatistas, o que mais nos chama atenção não é a maneira com que as “leis” da “história” os empurraram a sair às ruas em 1994 para combater o NAFTA. As condições econômicas podem até nos ajudar a compreender o que ocorrera no México, mas tampouco servirão para explicar as novas relações, os paradigmas quebrados e a emergência de um projeto radical que não é um socialismo requentado, mas algo essencialmente novo. As condições econômicas não explicam a praxis, pois esta faz emergir novos elementos, como fora o caso zapatista. E se isto nos anima, o faz justamente por ser algo novo, não por ser simplesmente original, mas radicalmente novo; não existia e nem poderia existir anteriormente, justamente por que é fruto da praxis, da criação histórica, neste caso citado, criação de classe, realizada em determinado período pela ação de determinados indivíduos organizados coletivamente, e por conseguinte que não poderia ser prevista ou determinada a priori por “esquematismos”.

Obviamente, toda criação no terreno histórico também pressupõem a relação com velhos elementos (e no caso do Zapatismo podemos nos referir às tradições milenares, a figura de Zapata e a cultura radical das comunidades indígenas que já existiam antes da emergência do fenômeno zapatista); elementos que já existiam, pois obviamente, se toda criação é histórica, parte de um terreno social (o melhor termo seria social-histórico). Mas o que caracteriza a criação é justamente esta capacidade de criar novas significações a partir do que existe, mas sem dúvida, ultrapassando o que existe e criando elementos novos, elementos, que a teoria é incapaz de prever, mas que a atividade teórica pode ajudar a elucidar, sem nenhum receio de recorrer a possíveis alterações e modificações de seus pressupostos conceituais.

Um aspecto da alienação da teoria, portanto, se conforma, quando há sua transformação de atividade teórica em sistema teórico, sistema que se propõe sempre a reduzir a realidade a um esquema totalmente racional, portanto possível de ser estritamente delimitado por um quadro conceitual que obedece a determinadas leis gerais. Isto causa sua autonomização [8] , transformando-a num sistema que se propõe absoluto, ou se conforma como teoria acabada, subordinando a ação política ao seu quadro conceitual, mesmo que recorra vez ou outra a uma relação que se pretenda dialética. Dialética, que confirmada pela prática de vários grupos de esquerda, assume um sentido cada vez mais envergonhadamente retórico. A alienação da teoria também causa alienação da prática política, pois esta permanece subordinada ao que anteriormente criara [9]. A prática torna-se refém da teoria e se aliena, pois ao invés de buscar a criação de novas estratégias e meios, permanece fiel a teoria que acreditara “dar conta” de toda a realidade, pelo menos em seus pressupostos fundamentais. E se há alguém, ou um grupo específico de revolucionários, que detém e maneja a teoria revolucionária, se este grupo supostamente detém a “chave” do caminho da revolução, deterá as estratégias corretas para a prática da classe trabalhadora.

“[...] a idéia de que a ação autônoma das massas possa constituir o elemento central da revolução socialista, aceita ou não, será sempre secundária para um marxista conseqüente – por não ter interesse verdadeiro, nem fundamentação teórica e filosófica. O marxista sabe para onde deve ir a história; se a ação autônoma das massas segue nesta direção, ela nada lhe ensina, se segue para outro lado, é uma má autonomia, ou melhor, não é mais uma autonomia, posto que se as massas não se dirigem para os objetivos corretos é porque continuam ainda sob a influência do capitalismo. Quando a verdade foi conquistada, todo o resto é erro, mas o erro nada significa num universo determinista: o erro é o resultado da ação do inimigo de classe e do sistema de exploração.” (CASTORIADIS, 1986: 44-45)

A classe permanece então refém destes teóricos [10], desta vanguarda: os únicos que podem interpretar; revisar e analisar os aspectos teóricos fundamentais que podem prever e construir os processos revolucionários. O socialismo perde gradativamente seu aspecto humano e torna-se cada vez mais refém de um discurso e de uma orientação, cujo predomínio técnico é evidente. A política passa a ser daí em diante, “[...] a aplicação de um saber adquirido num domínio delimitado e com fins precisos” (Ibid: 86-87), controlada evidentemente por determinadas vanguardas ou usando eufemismos gramiscinianos, “intelectuais-orgânicos”. Esta questão de fundo revela a relação problemática que o marxismo compôs entre ideologia e teoria; especialmente quando intentou transformar o que era uma aspiração dos trabalhadores (socialismo) em um desdobramento, uma conseqüência lógica da aplicação de uma técnica revolucionária, possível de ser conduzida corretamente por um sistema teórico. O marxismo transformou o que seria uma aspiração (ideologia) dos trabalhadores em uma doutrina, uma suposta “ciência” da revolução [11] , capaz de compreender não só o funcionamento do sistema capitalista, mas ser uma teoria total que busca também explicar a história humana e seus acontecimentos, revelando suas leis pelo chamado materialismo histórico-dialético [12], parte fundamental do socialismo “científico”.

Atentos a isto, muitos militantes anarquistas empreenderam duras críticas a este procedimento. Estes, no entanto, jamais descartarem a possível utilidade da teoria no processo de luta.

“O anarquismo é, no entanto, uma aspiração humana, que não se baseia em nenhuma necessidade real ou suposta da natureza, e que pode realizar-se segundo a vontade humana. Aproveita os meios que a ciência proporciona ao homem [...] quando estes servem para ensinar os homens a pensar melhor e mais precisa distinguir com mais precisão o real do fantástico, mas não se pode o confundir sem cair no absurdo, nem com a ciência nem com qualquer sistema filosófico [13] .”
(Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontá, 16 de maio de 1925. In: RICHARDS, 2007: 21.)

Já compreendemos que a teoria para os libertários, que aqui por reflexão conceitual chamei de atividade teórica “[...] aponta para a elaboração de instrumentos conceituais para pensar rigorosamente e conhecer profundamente a realidade concreta” (FAU. Huerta Grande: a Importância da Teoria), agora necessitamos precisar o que é possível compreender enquanto ideologia. Não utilizo o termo ideologia no sentido marxista (falsa consciência). Entendo-a como um “um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação” (FARJ, 2008: 17) A ideologia

“[...] é composta de elementos de natureza não científica, que contribuem para dinamizar a ação, motivando-a, baseada em circunstâncias que, ainda que tendo relação com as condições objetivas, não derivam dela, no sentido estrito. A ideologia está condicionada pelas condições objetivas, ainda que não seja determinada mecanicamente por elas.
[...]
A teoria torna precisa, circunstancializa as condicionantes da ação política: a ideologia motiva-a e a impulsiona, configurando-a em suas metas "ideais" e seu estilo.”

(FAU. Huerta Grande: a Importância da Teoria).

Assim como anteriormente defendi, que para o anarquismo, a prática política é indissociável da atividade teórica e vice-versa, e que a transformação da ideologia socialista num sistema teórico (marxismo) subordina e engessa a prática política, concluo que a atividade teórica sem ideologia também é impensável num projeto que seja transformador. Castoriadis tem a opinião de que a praxis se articula em torno de três elementos, o que ele chama de círculo da praxis:

“Tudo isso leva novamente ao que chamo o círculo da praxis. Esse círculo pode ser definido, como todo círculo que se preza em geometria plana, por três pontos não colineares. Há uma luta e uma contestação na sociedade; há a interpretação e a elucidação dessa luta; há a perspectiva e a vontade políticas daquele que elucida e interpreta.” (CASTORIADIS in VOLKER, 1981: 66.)

O círculo da praxis, que Castoriadis define como luta, interpretação e perspectiva; pode ser “traduzido” para a “linguagem” anarquista enquanto prática política, atividade teórica e ideologia [14]. E se o socialismo e a autonomia não são fruto da simples aplicação de um programa construído pelos especialistas, e que é embasado por um sistema teórico que “descortinou” as leis de funcionamento da história e da sociedade; somos levados a compreender, que o socialismo e a autonomia tornam-se frutos da ação e criação da práxis pela organização da classe. O próprio surgimento do anarquismo comprova esta tese. A emergência do anarquismo está inscrita no surgimento de novas significações no interior do movimento operário e não pode ser explicada como conseqüência da simples elaboração de um sistema teórico ou filosófico, mas de uma praxis em constante movimento e que constituiu a espinha dorsal da ideologia anarquista.

“O anarquismo na sua gênese, nas suas aspirações, em seus métodos de luta, não tem nenhum vínculo com qualquer sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais. [15]
Quando apareceram homens que se sentiram sufocados pelo ambiente social em que estavam forçados a viver, e cuja sensibilidade se viu ofendida pela dor dos demais como se ela fosse a sua própria, e quando estes homens se convenceram de que boa parte da dor humana não é conseqüência fatal das leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas deriva, por outro lado, de feitos sociais dependentes da vontade humana e elimináveis por obra do homem, abriu-se então a via que deveria conduzir ao anarquismo.”
(Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontá, 16 de maio de 1925. In: RICHARDS, 2007: 21.)

Ao afirmar que a ideologia anarquista nasceu de uma prática dos trabalhadores, Malatesta também assinala que o anarquismo possui uma conexão direta com a ação política, com a transformação social, e por isto, mediação permanente com a experiência da classe trabalhadora, e sua criação histórica. Prática política, atividade teórica e ideologia [16] no anarquismo, se articulam destarte, de maneira indissociável.

Concluímos que qualquer sistema teórico que pretenda subordinar a experiência do conjunto dos oprimidos e das oprimidas está completamente equivocado, porque é da experiência da classe, que surgem os únicos elementos e significações capazes de efetivar a reconstrução radical da sociedade capitalista por um processo revolucionário, processo que acredito ter como objetivos finalistas se, pretende-se eficaz, a superação da alienação e a construção da autonomia, o que os anarquistas há muito tempo chamam apenas, de socialismo libertário.

Notas

[1] A frase completa de Bakunin, e que nos esclarece sua visão acerca do real é esta: “A ciência, que só se relaciona com o que é exprimível e constante, isto é, com as generalidades mais ou menos desenvolvidas e determinadas, perde aqui o seu latim e baixa a sua bandeira diante da vida, pois só ela se relaciona com a parte viva e sensível, inacessível e inefável, das coisas. Tal é o real e, pode-se dizer, o único limite da ciência, um limite verdadeiramente intransponível... A ciência só trabalha com sombras... A realidade viva escapa-lhe, e só se mostra à vida, que, sendo também ela fugitiva e passageira, pode discernir e discerne efetivamente. (BAKUNIN, 1975: 42-43)

[2] Castoriadis neste ponto é bem elucidativo: “Para alguns, a crítica das pretensas certezas absolutas do marxismo é interessante, talvez até verdadeira – porém inaceitável, porque destruiria o movimento revolucionário. Como é necessário mantê-lo, é preciso conservar, a todo custo, a teoria, aceitando abater suas pretensões e exigências ou, se necessário, prontos para fechar os olhos. Para outros, já que uma teoria total não pode existir, é necessário abandonar o projeto revolucionário, a menos que seja colocado em plena condição com seu conteúdo, como vontade cega de transformar, a todo custo, uma coisa que não conhecemos em outra que conhecemos menos ainda. Nos dois casos, o postulado implícito é o mesmo: sem teoria total, não pode haver ação consciente. Nos dois casos, a fantasia do saber absoluto permanece soberana. E nos dois casos, a inversão irônica de valores se produz.” (CASTORIADIS, 1986: 90).

[3] Pois nem toda prática política visa transformação. E há práticas políticas que visam transformações, mas não visam a autonomia. Podemos transformar um governo mais ou menos democrático em um governo autocrático ou pior, em um governo de feições mais autoritárias. Há neste ponto transformação, mas uma transformação que não visa autonomia.

[4] Segue o texto original. “En La ciência, las teorias, siempre hipotéticas y provisórias, constituyen um médio cômodo para reagrupar y vincular los hechos conocidos, y um instrumento útil para la investigación, el descubrimiento Y la interpretación de hechos nuevos: pero no son la verdade. [...] Yo no creo em la infabilidad de la ciencia, ni em su capacidad de explicarlo todo, ni em su misión de regular la conducta de los hombres, como no creo en la infabilidadel Papa [...] Yo sólo creo em las cosas que pueden probarse; pero sé muy bien que las pruebas son algo relativo y pueden superarse y anularse continuamente mediante otros hechos probados [...].

[5] CASTORIADIS, 1987: 252-253.

[6] Iconoclastia que se normatiza como uma estratégia de evasão permanente.

[7] A separação entre fazer e pensar é o aspecto central das “doenças que caracterizam o que Maurício Tragtenberg chamava de “delinqüência acadêmica”. A absurda separação entre fazer e pensar, é a normatividade heteronômica da academia e o esvaziamento da teoria.

[8] Neste caso específico, utilizo a palavra autonomia no sentido de deslocamento, separação.

[9] Que é a subordinação da sociedade às instituições que ela mesmo criara.

[10] “E, se o socialismo é uma verdade científica à qual têm acesso os especialistas através de sua elaboração teórica, disso se segue que a função do partido revolucionário seria a de importar o socialismo no proletariado. Esse, com efeito, não poderia chegar ao socialismo a partir de sua própria experiência; no máximo, poderia reconhecer no partido que encarna essa verdade o representante dos interesses gerais da humanidade – e apoiá-lo. [...] O partido deteria a verdade sobre o socialismo, já que detém a única teoria capaz de levar até ele. Portanto, ele é, de direito, a direção do proletariado; e deve tornar-se tal também de fato, já que a decisão pode pertencer apenas aos especialistas da ciência da revolução. (CASTORIADIS, 1985: 163-164).

[11] Sobre isto Malatesta parece conveniente. “Portanto, não somos anarquistas porque a ciência nos diz que o sejamos; o somos, ao contrário, por outras razões, porque queremos que todos possam gozar dos benefícios e das alegrias que a ciência procura. (tradução minha)” Segue o original: Por lo tanto, no somos anarquistas porque la ciencia nos diga que lo seamos; lo somos, en cambio, por otras razones, porque queremos que todos puedan gozar de las ventajas y las alegrías que la ciencia procura. (MALATESTA in VERNON, 2007: 41).

[12] A concepção materialista-histórica sustentada pelo marxismo é insustentável segundo Castoriadis por que: “– Faz do desenvolvimento da técnica o motor da história ‘em última análise’, atribuindo-lhe uma evolução autônoma e uma significação fechada e bem definida. – Tenta submeter o conjunto da história a categorias que só tem sentido para a sociedade capitalista desenvolvida e cuja aplicação às formas precedentes da vida social coloca, mais do que resolve, problemas. – é baseada no postulado velado de uma natureza humana essencialmente inalterável, cuja motivação predominante seria a motivação econômica. Cf. CASTORIADIS, 1986: pp. 41.

[13] O original é: “El anarquismo es, en cambio, una aspiración humana, que no se funda sobre ninguna necesidad natural verdadera o supuesta, y qye podrá realizarse según la voluntad humana. Aprovecha los medios que la ciencia proporciona al hombre [...] cuando éstos sirvan para enseñar a los hombres a razonar mejor y a distinguir con más precisión lo real de lo fantástico; pero no se lo puede confundir sin caer en el absurdo, ni con la ciencia ni con ningún sistema filosófico.” A tentativa de transformar o anarquismo numa ciência também fora criticada por Malatesta.

[14] Aqui vale um adendo oportuno. Seria mais adequado dizer que a ideologia anarquista supõe um horizonte revolucionário (uma perspectiva, no sentido Castoriadiano) mais ou menos sistematizado em torno de referências comuns que a constituem enquanto um conjunto de idéias, motivações, etc, mas seria absurdo reduzir a ideologia anarquista à apenas um simples horizonte futuro (fins - a anarquia). É preciso compreendê-la enquanto uma dimensão de práxis (meios, métodos, ferramentas - anarquismo) que conduzem ou se orientam à estes fins (e portanto, possuem relação direta com a prática política). É impossível compreender a ideologia anarquista sem compreendê-la enquanto mediada pelos outros componentes do círculo da praxis. O anarquismo em diversas análises fora compreendido como simples negação do Estado. Mas o anarquismo é mais complexo do que uma simples negação. O anarquismo também supõe um conjunto de métodos, ferramentas e estratégias revolucionárias que buscam determinado fim.

[15] Segue o original em espanhol. “El anarquismo em su génesis, sus aspiraciones, suas métodos de lucha, no tiene ningún vínculo necesario com ningún sistema filosófico. El anarquismo nació de la rebelión moral contra las injusticias sociales. Cuando aparecerion hombres que se sintieron sofocados por el ambiente social en que estaban forzados a vivir y cuya sensibilidad se vio ofendida por el dolor de los demás como si fuera próprio, y cuando esos hombres se convencieron de que buena parte del dolor humano no ES consecuencia fatal de leyes naturales o sobrenaturales inexorables, sino que deriva, em cambio, de hechos sociales dependientes de la voluntad humana y eliminables por obra del hombre, abrió entoces la via que debía conducir al anarquismo. Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontá, 16 de maio de 1925. In: RICHARDS, 2007: 21

[16] O círculo da práxis de que fala Castoriadis.

REFERÊNCIAS

BAKUNIN, Mikhail. Catecismo Revolucionário: Programa da Sociedade da Revolução Internacional. São Paulo: Editora Imaginário, 2009a.
__________________. A Ciência e a Questão Vital da Revolução, São Paulo: Editora Imaginário, 2009b.
__________________. O Conceito de Liberdade – Vol. 3, Porto: Rés Limitada, 1975.
__________________. O Sistema Capitalista. São Paulo: Editora Faísca, 2007.
BERNERI, Camillo. In Socialismo Libertário nº 24 – Ano VII – Trimestre: Julho/Agosto/Setembro – 2010.
CASTORIADIS, Cornelius. A Experiência do Movimento Operário. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
____________________. As Encruzilhadas do Labirinto No 2: Os Domínios do Homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
____________________. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
____________________. Socialismo ou Barbárie: O conteúdo do socialismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
FARJ. Anarquismo Social e Organização. Rio de Janeiro: Editora Faísca, 2008.
FAU. Huerta Grande: a Importância da Teoria. Disponível em . Acessado em 20/12/2010.
TRAGTENBERG, Maurício. A Delinqüência Acadêmica, 1990.
SILVA, Rafael V. da. Anarquismo contra o Anarquismo. Publicado em Anarkismo.net Disponível em . 2011. Acessado em 03/07/11.
VERNON, Richards (compilador). Malatesta: pensamiento y acción revolucionarios.1a Ed. Buenos Aires: Tupac Ediciones, 2007.
VOLKER, Paulo; CORDEIRO, Renato Caporalli; PURRI, Victor José Bicalho et al. Revolução e Autonomia: um perfil político de C. Castoriadis. Belo Horizonte: COPEC, 1981.

Atividade teórica ou sistema teórico?
Atividade teórica ou sistema teórico?

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