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Breve apontamento sobre teoria e ideologia

category brazil/guyana/suriname/fguiana | a esquerda | opinião / análise author Wednesday February 08, 2012 07:48author by Michel Navarro - Organização Anarquista Socialismo Libertário (OASL)author email michelnavarro at riseup dot net Report this post to the editors

Para nós certeza ideológica não acarreta certeza teórica. A dúvida teórica nos permite sempre procurar novas ferramentas quando a realidade nos coloca novos desafios para a atuação militante. Isso não significa ir por ai aderindo a qualquer teoria mais fresca na prateleira. Mas analisar as teorias que surgem, e investigar se algumas das suas explicações e predições lançam luz principalmente sobre erros que cometemos, porque encontramos limitações para ler a realidade em situações concretas de atuação. Se a teoria não contribui para a nossa intervenção, não há porque de adotá-la.
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No terreno da militância política é comum encontrarmos uma confusão, em diversos graus, entre teoria e ideologia. Embora mais recorrente entre os militantes mais novos, tomar uma teoria por ideologia e uma ideologia por teoria, também é constante e mais cristalizado entre militantes antigos com boa formação teórica e prática. Essa confusão não é nada nova, e, de uma maneira ou de outra, sempre esteve presente na esquerda.

Esta indistinção é bem comum entre setores ortodoxos do marxismo. Os marxistas ortodoxos sempre sustentaram a idéia de que o marxismo é a teoria científica do proletariado, e que qualquer método de análise que não seja o materialismo histórico-dialético é um método de uma suposta ciência burguesa, e, por isso, dogma, ideologia, inversão da realidade, falsa consciência, cujo único propósito é legitimar e reafirmar a sociedade capitalista.

Historicamente, essa perspectiva foi utilizada pelos estados totalitários do chamado “socialismo real” para proibir o ensino de qualquer teoria que esses regimes julgassem “burguesa” ou “pequeno-burguesa”. Exemplo mais claro disso foi a proibição, por Stálin, da psicanálise na União Soviética. Lógico que tal posição encontrava limites pragmáticos, já que no tocante ao investimento na indústria bélica e nuclear, o que havia de mais avançado na física de então era muito bem vindo.

O marxismo não é e nunca será uma teoria científica, justamente porque o marxismo é uma um conjunto de idéias e valores expressos em princípios ideológico-políticos. Como sistema de idéias e valores que orientam e fundamentam estratégias de prática política, o marxismo é uma entre várias correntes de idéias socialistas que surgiram no século XIX a partir das experiências de organização, resistência e luta da classe trabalhadora européia.

Se para os ortodoxos do marxismo isso soa como uma heresia, para outras correntes do socialismo, a afirmação de que elas são ideologias (no sentido fraco do termo, i.e., conjunto de valores e aspirações intimamente ligados à prática política) e não teorias é bastante consensual. Nós anarquistas sustentamos justamente que o anarquismo é uma ideologia revolucionária anticapitalista que surge, tal como o marxismo, a partir de práticas sociais da classe trabalhadora no século XIX.

A consciência de que o anarquismo é uma ideologia, uma corrente do socialismo, nos deixa sempre abertos para utilizar novos sistemas de explicação dos fatos sociais, políticos, econômicos e culturais que possibilitam uma melhor compreensão da realidade para melhor nela intervirmos. E disso não resulta que sejamos ingênuos ao ponto de acreditar na falácia da neutralidade da teoria. Sabemos que qualquer teoria, principalmente uma teoria política ou sociológia, consiste em um método de análise da realidade que contem valores que impossibilitam a sua total neutralidade.

Se nem sequer no campo das ciências naturais a neutralidade teórica é possível, o que dizer ainda de teorias políticas e sociológicas. Entendemos que toda teoria é um construto, que contem pressupostos que não podem ser avaliados empiricamente, e que constituem o alicerce da teoria. Até mesmo os experimentos existem no âmbito de uma teoria, pois é a teoria que indica para onde devemos olhar. O que no interior de uma teoria pode se constituir como fenômeno que demanda explicação em outra pode nem sequer ser uma questão real.
Mas entre reconhecer que teorias nunca estarão completamente livres de valores e assumir um conjunto de idéias e valores como teoria há uma diferença inquestionável.

É justamente por entendermos que teorias veiculam valores, ou seja, que há ideologia na teoria, que pensamos que se deve - sempre que preciso - recorrer a ou desenvolver novos métodos de análise que contribuam para nossa prática militante. Estar aberto a aperfeiçoar teorias já existentes e utilizar-se de novas é justamente um mecanismo de evitar cristalizações que acabam por engessar um método que se aplica a toda e qualquer situação, i.e., impossível de ser refutado. Sem que a experiência possa, por assim dizer, desafiar a teoria, esta passa a ser um dogma que, ainda que de forma ilusória, força a realidade, sem dúvida sempre maior que a teoria, a se encaixar no seu sistema de axiomas que tudo explica e tudo deduz.

Entendemos que não há um método inquestionável, aplicável e reproduzível a toda e qualquer situação, em todo e qualquer tempo. Fazer do materialismo histórico-dialético o único método possível, o único método que deve orientar a classe trabalhadora na luta, não é senão assumir uma posição idealista diante da realidade.

Se há fatos que o materialismo histórico-dialético não explica, não são os fatos que estão errados, pois fatos não erram, é o método que precisa ser revisto. Não é o próprio materialismo histórico-dialético que sustenta que, uma vez que a própria consciência teve um desenvolvimento histórico em que os fatos materiais influíram na sua constituição, então os fatos devem desempenhar também um papel central na constituição das teorias?

Assumir o materialismo histórico-dialético como única teoria não consistiria justamente em negar a contingência e a historicidade das idéias e sistemas filosóficos humanos e, consequentemente, negar o que o próprio materialismo histórico-dialético assume?

Para nós certeza ideológica não acarreta certeza teórica. A dúvida teórica nos permite sempre procurar novas ferramentas quando a realidade nos coloca novos desafios para a atuação militante. Isso não significa ir por ai aderindo a qualquer teoria mais fresca na prateleira. Mas analisar as teorias que surgem, e investigar se algumas das suas explicações e predições lançam luz principalmente sobre erros que cometemos, porque encontramos limitações para ler a realidade em situações concretas de atuação. Se a teoria não contribui para a nossa intervenção, não há porque de adotá-la.

Duvidar aqui é também de ordem prática. A realidade está sempre além do nosso entendimento, que é limitado e temporal, “humano demasiado humano”. A dúvida teórica é a postura mais materialista possível, pois assume, de antemão, que a realidade é muito mais do que podemos abarcar.

Para uma prática sempre em aperfeiçoamento, a melhor receita é a certeza ideológica (aspirações) e a constante e sistemática dúvida teórica (como melhor interpretar para agir).

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