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Para uma Teoria Libertária do Poder (IV)

category brazil/guyana/suriname/fguiana | movimento anarquista | opinião / análise author Tuesday October 25, 2011 21:42author by Felipe Corrêa Report this post to the editors

Errandonea, Dominação e Classes Sociais

“Para uma Teoria Libertária do Poder” é uma série de resenhas elaboradas sobre artigos ou livros de autores do campo libertário que discutem o poder. Seu objetivo é apresentar uma leitura contemporânea de autores que vêm tratando o tema em questão e trazer elementos para a elaboração de uma teoria libertária do poder, que poderá contribuir na elaboração de um método de análise da realidade e de estratégias de bases libertárias, a serem utilizadas por indivíduos e organizações. Publicada originalmente no portal http://www.estrategiaeanalise.com.br.
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Neste quarto artigo da série, utilizarei para discussão o livro “Sociologia de la Dominación”, de Alfredo Errandonea.[*] Nele, o sociólogo uruguaio discute métodos de análise e, a partir da categoria exploração – segundo acredita, uma categoria essencialmente econômica – busca discutir uma categoria mais ampla, a dominação, e, a partir dela, rediscutir as definições das classes sociais.


ECONOMIA E PODER

O sociólogo uruguaio Alfredo Errandônea, em seu livro Sociologia da Dominação, notou uma tendência, no que diz respeito às categorias explicativas da teoria social, à priorização de “dois grandes tipos de categorias: as econômicas e as de poder”. [p. 17] Para ele, ambas as categorias pareceriam, inicialmente, constituir pontos de partida adequados na busca da explicação social.

Em relação à relevância da economia como categoria explicativa, coloca: “Toda sociedade, necessariamente, tem de solucionar o problema de seu sustento cotidiano, da extração ou da produção daquilo que consome. Além disso, todos os seus membros necessitam fundamentalmente dessa solução, o que também exige que seja organizada a distribuição dos recursos, por meio dos quais essa necessidade é satisfeita. A questão é tão evidente, que parece óbvia a idéia de que os acontecimentos e a história de cada sociedade tenham relações com as maneiras de como se produzem os bens e os serviços que são consumidos e a forma que eles são distribuídos entre os membros da sociedade em questão. [...] Não é estranho, portanto, que o esforço de explicar os fatos sociais por meio dos fatores econômicos tenha uma ampla história.” [p. 18] Para ele, a utilização da economia como categoria explicativa do social precede, inclusive, muito amplamente, o próprio surgimento das Ciências Sociais como uma disciplina. Errandonea recorre a exemplos históricos que se utilizam da economia para explicar a sociedade, chegando até o século XIX, quando, segundo considera, há um aumento exponencial nas explicações de caráter econômico. [p. 20] Em referência à revisão bibliográfica do tema, o autor afirma que grande parte das explicações econômicas configura-se, crescentemente, com maior ou menor grau de precisão, “em torno da idéia daquilo que, a partir do século XIX, denominou-se ‘exploração’”. [Ibid.] Considerando a formulação de Marx a mais formal e completa sobre a categoria exploração, Errandonea atribui-lhe mais o mérito pela sistematização teórica do que pela originalidade das idéias. Para ele, a explicação econômica “encontra sua expressão mais elaborada na teoria de Marx, e concretiza-se na categoria ‘exploração’, que constitui seu eixo explicativo fundamental”. [p. 21]

Como categoria explicativa, o poder também possui significativa importância: “A observação, reiterada nas mais diferentes sociedades, da presença de uma minoria que toma as decisões fundamentais e uma maioria que as obedece, também é uma representação muito antiga na história das reflexões sociais. E, naturalmente, mando e obediência – poder, em grande medida – sugerem, em si mesmos, capacidade de explicação dos acontecimentos. Cada referência histórica realizada a partir da concepção do condicionamento econômico poderia ser acompanhada de outra que enfoque o poder. Mas o mais interessante é que, na maioria dos casos, em maior medida quanto mais remoto for o fato, essa explicação do poder aparece associada, misturada ou mesmo confundida a explicação que se fundamenta na determinação econômica.” [p. 22] Errandonea enfatiza a preferência de diversos teóricos pela categoria poder, os quais atribuem a ela maior capacidade explicativa. Segundo o autor, dentre esses teóricos, foi Max Weber que elaborou uma analítica do poder de maneira mais aprofundada, ainda que a categoria poder, para ele, se aproxime significativamente da categoria dominação.

Levando em conta que ambas as categorias vêm sendo utilizadas historicamente e possuem capacidade explicativa, pode-se questionar: as categorias economia e poder são sempre excludentes, uma em relação à outra?

Errandonea aponta uma “outra vertente interpretativa do problema do poder”, que parece dar resposta a essa questão ao insistir em “manter a capacidade explicativa do poder ligada à da exploração”, e, portanto, à economia. [p. 23] Perspectiva presente, segundo acredita, na “ala radicalizada da Revolução Francesa (Babeuf e sua ‘Conspiração dos Iguais’). Mas a abordagem mais representativa é a que foi realizada pelos anarquistas no seio do movimento socialista (Proudhon, Bakunin, na Primeira Internacional, etc.).” [Ibid.]

A afirmação do autor fundamenta-se na análise de anarquistas clássicos que relacionavam o Estado (em relação ao qual se referiam, constantemente, pelo termo de “poder”) com a organização de classes do capitalismo e a conseqüente exploração existente. O fundamento teórico desses anarquistas relacionava poder e exploração. “Essa terceira linha interpretativa, que enfatiza a indissolubilidade da ligação entre exploração e poder, desenvolve-se no seio do movimento socialista, e está representada pela visão anarquista do problema.” [p. 26]

Surge aqui outro questionamento. Nessa síntese entre a economia e o poder, estaria o segundo completamente subordinado à primeira? Fundamentando-se em Foucault, Errandonea nega que o poder seja somente manutenção e reprodução da economia, ou que o poder estaria completamente subordinado a ela; afirma o poder como relação de força. Portanto, buscar categorias fundamentadas na economia e no poder implicaria abdicar da concepção de que há, necessariamente, um determinismo da economia em relação ao poder.

Por meio dessas afirmações, o autor estabelece sua premissa teórica: conciliar o poder e a economia – as duas categorias que mais explicariam o social –, partindo da exploração e chegando à categoria dominação, a qual fundamentará suas reflexões acerca das classes sociais – objeto central de seu estudo.


EXPLORAÇÃO E CLASSES SOCIAIS

A discussão de Errandonea parte da categoria exploração, visando demonstrar sua relevância, mas ao mesmo tempo, apontar sua insuficiência para uma compreensão das classes sociais. Seu ponto de partida é a formulação marxista clássica que parte do fato de que “um indivíduo, ou uma classe de indivíduos vêem-se obrigados a trabalhar mais do que o necessário para satisfazer suas necessidades fundamentais; em razão do sobreproduto, que aparece de um lado, e o não-trabalho e a riqueza suplementar, que aparecem de outro. [...] Então, a exploração, definida como apropriação do trabalho alheio é comum a todas as sociedades históricas de classes, ainda que sua análise, nos textos marxistas, refira-se, quase sempre, a sua mais perfeita expressão: quando força de trabalho e meios de produção – separados – constituem valores de troca; ou seja, no capitalismo.” [pp. 29-30] Exploração que, dessa maneira mais acabada como se apresenta no capitalismo, provém de formas anteriores, de um desenvolvimento histórico precedente.

Retomando a definição da categoria exploração de O Capital de Marx, Errandonea afirma que nessa obra se “define a exploração pela mais-valia”. [Ibid.] A definição de Marx é a seguinte: “a taxa de mais-valia é, por isso, a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista” – reflexão que, certamente, incorporou elementos da teoria de Proudhon sobre a propriedade. Uma categorização que se coloca no domínio estrito do modo de produção capitalista. “A exploração está ligada às sociedades de classes na conceituação marxista. Mais do que isso; para Marx é a categoria exploração que define as classes sociais.” [p. 31]

A exploração constitui um ponto de partida inevitável para se avançar na capacidade explicativa das categorias sociais. Essa ferramenta analítica possui um nível suficiente de generalidade e cruza transversalmente a história das sociedades “por seu centro nevrálgico de funcionamento global (a produção), e de satisfação de necessidades (a distribuição)” [p. 32]; ainda que possua seu auge explicativo no contexto do capitalismo europeu do século XIX – fundamentalmente da Alemanha, da Inglaterra e da França – ela permite realizar distinções na sociedade.

Foi por meio da utilização da categoria exploração que se pôde investigar as relações econômicas da sociedade e concluir-se que, já que a mais-valia é o elemento fundamental que a explica, a divisão fundamental da sociedade se dá em razão da propriedade dos meios de produção, que toma corpo nas classes sociais: de um lado, os proprietários, a burguesia, que explora, do outro, os trabalhadores, o proletariado, que são explorados; uma relação de permanente conflito que fundamentou a noção de luta de classes.

Ainda que se possa questionar a diferença entre as concepções de Marx e do marxismo nesse sentido, é fato que Engels e parte significativa do marxismo fundamentaram sua concepção de classe em torno da propriedade dos meios de produção, conforme nota do Manifesto Comunista: “Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social que empregam o trabalho assalariado” e “por proletariado, a classe dos assalariados modernos que, não tendo meios próprios de produção, são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver.” O trabalho assalariado evidenciaria a exploração quando a burguesia se apropria da mais-valia gerada pelos trabalhadores. Marx já vinha colocando, pelo menos desde o Manifesto Comunista de 1848, a exploração como uma categoria de destaque para a interpretação da realidade; fundamentando-a economicamente nas classes sociais (burguesia e proletariado) e no conflito entre elas (luta de classes).

Apesar da centralidade da categoria exploração, utilizada por grande parte do socialismo, e que constitui a base da análise marxista da realidade, Errandonea identifica que, se por um lado ela de fato é uma categoria muito relevante na explicação social, por outro “essa capacidade explicativa não possui a generalidade, a universalidade e a exclusividade que Marx lhe atribuiu”. [p. 35] “O alto poder explicativo que possui a categoria exploração não a exime de sua insuficiência ao se colocar no nível de universalidade imaginado por Marx”. [Ibid.] Fundamentado nessa dupla posição, de assumir a relevância da categoria exploração, e de demonstrar suas insuficiências, Errandonea fundamenta uma demonstração dos limites da categoria exploração em dois eixos centrais: a insuficiência explicativa fundamentada apenas em uma esfera da sociedade (econômica) e a impossibilidade de extrapolar em termos de tempo e espaço essa categoria, tanto para avaliar as sociedades pré-capitalistas, como as distintas formas do capitalismo contemporâneo (incluindo, na época em que escrevia, o capitalismo de Estado, chamado de “socialismo real”).

Em relação ao primeiro eixo, Errandonea busca comprovar que a categoria exploração é econômica: se a mais-valia é a expressão mais exata da exploração, e se ela significa a porção do produto social apropriada pelo capitalista, pode-se dizer que ela se expressa em termos de produção, e sua medida se realiza por meio de unidades monetárias (dinheiro) como expressão e medida do valor de troca. “Não pode haver dúvidas de que se trata de uma categoria econômica”, enfatiza. Em sua máxima capacidade explicativa, a categoria não incluirá os privilégios, o trato reverencial e a gratificação que ela implica, os acessos e possibilidades que concedem os níveis hierárquicos, o prestígio, o poder, o conhecimento, quando eles emanam da própria condição de exploração. (Sem falar de quando não resultam dela...) Serão adicionais sociais que escapam à medida econômica que, no capitalismo, por exemplo, expressa a taxa de mais-valia. Por outro lado, a análise econômica também não dá conta da qualidade não-econômica da luta e da resistência dos trabalhadores, como colocou Castoriadis.” [pp. 36-37]

Para o autor, a exploração é uma categoria econômica explicitada na relação entre as classes sociais. As classes sociais, segundo sustenta, não podem ser explicadas somente pela exploração, e nem somente pela economia; há aspectos que dizem respeito às esferas política e cultural/ideológica que, juntamente aspectos econômicos, seriam fundamentais para uma explicação mais consistente das classes sociais.

Em relação ao segundo eixo, Errandonea aponta que, mesmo que no capitalismo industrial do século XIX seja central a capacidade explicativa da categoria exploração, ela possui limites para a explicação de outras sociedades.

Nas sociedades pré-capitalistas, as relações de classes, ainda que distintas, existiam, forjando estratificações rígidas que implicavam hierarquias significativas. Essas estratificações, entretanto, fundamentavam-se mais no poder de mando, nas autoridades e no prestígio do que nas relações de exploração. O autor afirma que, mesmo em sociedades em que não existe exploração, por razão da falta de excedente e de acumulação, isso não significa que não haja classes sociais. Esse fato fundamenta sua conclusão de que não se pode definir as classes somente pela categoria exploração, se há uma intenção de que a categoria seja universal em termos de tempo e lugar. Definir as classes sociais a partir da exploração pode permitir uma análise adequada do capitalismo, mas não de sociedades pré-capitalistas.

Para além das sociedades pré-capitalistas, Errandonea acredita que o século XX foi permeado por mudanças significativas no capitalismo, diferenciando-o do modelo do “capitalismo do século XIX ao qual responde tão pontualmente o modelo descrito em O Capital”. [p. 42] “A idéia que a taxa de mais-valia – medida da exploração na sociedade capitalista – constitui o pivô fundamental da relação de classes e do próprio devir futuro do modo de produção capitalista, parece requerer retificações importantes para o caso desse capitalismo atual.” [p. 43]

Ainda que estivesse na América Latina, no fim dos anos 1980, Errandonea percebe e problematiza aspectos relevantes do capitalismo atual, os quais continuam presentes na sociedade contemporânea. Em relação ao mercado capitalista, o autor aponta que “a dinâmica do sistema produtivo capitalista exigiu e originou um constante aumento do mercado consumidor”. [p. 44] A diferença, para ele, não estaria no papel do trabalhador como um consumidor para o capitalista, mas na “dinâmica de crescimento do consumo exigindo a ampliação constante do mercado característico do capitalismo da era keynesiana”. [Ibid.] Um dos meios de conseguir esse crescimento foi a inclusão massiva de trabalhadores no mercado de consumo mundial, fundamentalmente nos países centrais do capitalismo. Outro fator importante foi a mudança de papel do Estado, que passou das funções meramente repressivas para intervenções mais ativas no mercado capitalista, constituindo-se, também, como agente econômico. Fenômenos como intervenções, privatizações e mesmo os casos do nazismo e do fascismo demonstram, para o autor, esse novo papel do Estado, ainda que aspectos essenciais do modelo capitalista do século XIX tenham sido mantidos. “Esse fenômeno de papel econômico do Estado, longe de limitar-se aos países capitalistas centrais, ocorre também, com muita importância, nos países capitalistas dependentes” [pp. 45-46] – fenômeno que, próprio do século XX, não permitiu que a maioria das correntes revolucionárias do século XIX tratasse do tema.

Em vez da polarização das classes sociais e do empobrecimento generalizado do proletariado, ambos previstos por Marx, o século XX, segundo Errandonea, teria também demonstrado um crescimento absoluto e relativo “de estratos sociais que não constituíam especificamente o proletariado industrial (incluindo setores importantes de outras frações do proletariado) e nem a burguesia; houve melhoria considerável no nível de vida desses setores e do próprio proletariado industrial”. [p. 45] Além disso, o século XX colocou a necessidade de um aparelho burocrático para gestão das empresas que foi sendo ocupado por pessoas que, ainda que não tivessem a propriedade dos meios de produção, eram as autoridades responsáveis pela gestão da empresa. Ainda que assalariadas, essas pessoas são responsáveis pela apropriação de uma parte da mais-valia: “ocupações técnicas ou de direção, já não implicam mais a produção de mais-valia, mas, ao contrário, a participação na apropriação de uma parte do excedente, diferente do proprietário dos meios de produção”. [Ibid.] Processo este, que evidencia a “separação da propriedade jurídica e a posse efetiva ou o controle da autoridade empresarial”, “relativamente comum no neocapitalismo contemporâneo”, e que é fruto, não só do sistema de ações, mas também da dimensão das empresas. [p. 46]

As dificuldades que implicam estratificar com base na categoria exploração os setores de comércio e serviços acentuam-se com inumeráveis funções (ocupações) que surgem durante o século XX que, ainda que sejam dependentes, não produzem mais-valia, “como ocorre com muitos dos cargos públicos estatais ou de outras grandes organizações, cuja existência não responde sequer à necessidade do cumprimento de algum serviço e à qualquer outra exigência econômica. A burocracia moderna está cheia de exemplos.” [p. 45] “Na concepção clássica da teoria marxista, a mais-valia – ou a exploração mais genericamente – se produz por meio das relações de produção, através delas. O neocapitalismo nos mostra a separação entre a mais-valia e as relações sociais de produção, com uma freqüência e uma importância relativa que nos impedem de descartá-la.” [p. 44] Uma separação que se evidencia não só no comércio e nos serviços, mas também nas distintas ocupações que, ainda que sejam relevantes para o capitalismo, não produzem mais-valia.

Enfim, Errandonea aponta: “O neocapitalismo do século XX mostra certas variantes importantes em relação ao capitalismo do século XIX caracterizado por Marx: variantes que afetam o poder explicativo da categoria exploração segundo sua formulação clássica, seja porque alteram, obscurecem ou diminuem sua eficácia em relação à sua capacidade frente àquele outro capitalismo, ou simplesmente porque requerem outros fatores explicativos.” [p. 47]

O último aspecto que fundamenta o segundo eixo do autor é o caso da antiga Rússia/URSS, também concretizado somente no século XX com a revolução de 1917. Errandonea apresenta duas possíveis análises para o caso: uma primeira, de que a sociedade soviética seria o estágio intermediário, de ditadura do proletariado, previsto pelo marxismo para que se atingisse o comunismo, e uma segunda, de que o modelo soviético foge ao modelo teórico marxista.

Fundamentado na primeira análise, Errandonea, ao fim dos anos 1980, afirma que, ainda que não houvesse burguesia e proprietários de terras na URSS há décadas, pareceria “indiscutível o caráter estratificado da estrutura social soviética” [p. 48], a qual se fundamentaria em diferenças salariais de até 15 vezes entre os estratos inferiores e superiores da população, no acesso às decisões políticas centralizado no PCUS, na presença de privilégios e, fundamentalmente, na propriedade estatal. Isso o leva a afirmar que o “socialismo real” da antiga URSS seria, na realidade, um “capitalismo de Estado”. A administração dos meios de produção concentrar-se-ia em uma “nova classe” composta por certos grupos recrutados a partir de critérios político-burocráticos que estariam responsáveis pelo excedente resultante do sobretrabalho: “é evidente que na sociedade soviética há sobreproduto que não passa às mãos daqueles que criaram esse valor, mas financia o Estado soviético e seu poderio, que é estabelecido pela burocracia dirigente.” [pp. 48-49] Ainda que se possa discutir se esse excedente seria ou não mais valia, coloca, “não há dúvidas que é exploração. [...] Existem exploração e estrutura de classes na sociedade soviética, sem que subsistam as velhas classes dominantes e sem que o ‘cerco capitalista’ constitua uma justificativa eficaz para isso.” [p. 50]

Fundamentado na segunda análise, Errandonea questiona que tipo de sociedade constituiria a URSS e afirma que, certamente, seria uma sociedade classista e com exploração, mas pós-capitalista. Aqueles que se apropriam do excedente (sobreproduto) não o fazem porque são proprietários dos meios de produção, mas por virem de grupos constituídos pelo recrutamento político-burocrático. A exploração, nesse caso, por si só, não daria conta de explicar a realidade soviética. Essa realidade não pôde ser prevista pela teoria marxista do século XIX. Foi somente o anarquismo que afirmou que “uma revolução que culminasse na instalação da ditadura do proletariado (em vez de dissolver o Estado) levaria a uma organização despótica moderna”. [p. 52] Recorrendo a Bakunin e Fabbri para justificar tal afirmação teórica, Errandonea demonstra que a previsão anarquista, na URSS, tornou-se concreta.

Manter o Estado depois de um processo revolucionário significaria, para Bakunin, manter a estrutura de dominação, e portanto de classes, da sociedade. Ainda que as relações entre as classes se modificassem, a divisão da sociedade entre uma minoria de governantes e uma maioria da governados terminaria, necessariamente, por manter a dominação. E mais, a estrutura do Estado poderia, inclusive, recriar o capitalismo. Errandonea acredita que a análise do caso soviético também evidencia uma limitação da categoria exploração em sua formulação clássica.

A análise da categoria exploração como instrumento teórico explicativo, realizada por Errandonea, busca, portanto, evidenciar as limitações dessa categoria para interpretar, universal e exclusivamente, os acontecimentos globais e a história das sociedades humanas. A categoria exploração, assim, conforme concebida na teoria marxista clássica, é incompleta. Essa análise o leva a quatro conclusões: “a.) Trata-se de uma categoria geral, praticamente universal [...] que, de diferentes maneiras está presente na explicação de quase todas as sociedades desiguais. Possui uma aptidão para a explicação [...] das mudanças sociais. A essa virtude teórica, soma-se uma aptidão metodológica considerável. b.) Tal como se apresenta na formulação clássica marxista constitui uma categoria econômica que, por si só, não pode dar conta de toda a problemática da desigualdade em todas as sociedades de qualquer tempo e lugar; ainda que em quase todas elas, seu aporte à explicação seja imprescindível. [...] c.) Não obstante, constitui um ponto de partida inevitável para encontrar outra categoria mais geral que a implique e que, reunindo suas qualidades teóricas, possa ser identificada com o fenômeno das classes sociais. d.) Seguramente, a exploração é uma das dimensões ou manifestações mais importantes das estruturas de classes da grande maioria das sociedades históricas, a ponto de seu predomínio em algumas delas – como o caso do capitalismo do século XIX – identificá-la, praticamente, com a determinação daquela estrutura e sua mudança. Isso implica que a sociedade em questão baseia sua organização social de classes quase integralmente na estrutura econômica produtiva, cuja dinâmica própria obedece fundamentalmente as leis da exploração.” [pp. 53-54]

Na intenção de dar continuidade ao estudo das categorias fundamentais, Errandonea afirma que as desigualdades sociais, as estruturas de classes nelas implicadas, suas mudanças e variações históricas não podem ser explicadas uniformemente por uma ou mesmo duas categorias. Assumindo que há “diferentes equações de fatores” para a compreensão das classes sociais na história – e tais fatores podem ter diferentes pesos e níveis. O autor acredita que a categoria exploração é o fator mais importante nessa equação e um dos fatores com maior capacidade de generalidade; no entanto, não é o maior. Na busca dessa categoria que possa cumprir esse papel, tendo como premissa abarcar, incluir a categoria exploração, Errandonea vai sugerir a categoria dominação.


EXPLORAÇÃO E DOMINAÇÃO: ECONOMIA E PODER

Para Errandonea, conciliar economia e poder, em uma formulação teórica que permita avançar nos estudos das classes sociais, implica utilizar a categoria dominação. Com maior nível de generalidade, a dominação é capaz de fundamentar a interpretação das classes sociais em todas as sociedades em que elas existam, ainda que ela não permita explicar os diferentes tipos de estruturas de classes. Mais ampla que a categoria exploração, essencialmente econômica, a dominação representa a síntese entre economia e poder da qual se tratou anteriormente. A busca dessa síntese e sua relação com as classes sociais é o desafio que o autor se propôs a enfrentar.

Errandonea afirma a insuficiência dos critérios econômicos para definir a categoria classes sociais e possibilitar que ela explique as sociedades; defende que as classes sociais sejam definidas a partir de critérios que levem em conta a economia e o poder – o que sintetiza na categoria dominação. “A chave está em pensar na exploração como meio da dominação” [p. 63], ou seja, a exploração estaria contida na dominação, constituiria um de seus elementos. Identificando essa relação entre a exploração e a dominação, o autor considera ser necessário aprofundá-la e, para isso, retoma Marx, em O Capital, que, como se viu, define a exploração em termos de mais-valia. Errandonea coloca que, a partir de seu destino, a mais-valia pode ser dividida em duas: aquela que é destinada ao consumo e aquela que é utilizada para o reinvestimento; na medida em que a taxa de exploração aumenta, afirma, também aumenta o reinvestimento. Sociologicamente, o que importa nesse sentido não é somente compreender como se decide sobre o destino do excedente – o ponto de vista econômico –, mas que “existe uma decisão social sobre o destino do excedente e as subseqüentes derivadas do controle de sua administração”. [p. 67] Essa decisão pode ser tomada pelo Estado, por um grupo, por agentes privados atuando no mercado etc. – ou seja, ela pode vir do âmbito estatal ou privado – e pode ser mais ou menos centralizada. A questão, coloca o autor, é que “sempre há uma decisão e, por definição, sempre o destino é o reinvestimento social”. Trata-se, nesse caso, “de poder econômico, o qual implica uma estrutura decisória” – um fenômeno que divide aqueles que decidem sobre o reinvestimento (e que, portanto, têm poder para tanto) e aqueles que estão excluídos dessa decisão que os afeta. [Ibid.]

Nas distintas sociedades, afirma, é possível identificar conjuntos, distintos em termos qualitativos, de dominadores e dominados. Nesse sentido, na definição das classes sociais não importaria a quantidade de mais-valia: “É evidente que a distância social que concebemos entre eles [os conjuntos] não pode ter nada a ver com alguma suposta função da taxa de exploração, ou com qualquer outra medida quantitativa capaz de forjar espaços que definimos como qualitativos.” [p. 68] Nem mesmo seu destino concreto: “Não interessa qual é o destino concreto resultante da decisão sobre o reinvestimento.” Portanto, “a definição das classes e a identificação de cada uma, nessa perspectiva da estrutura social produtiva, se resolve pela participação ou não nas decisões sobre o reinvestimento, decisão que, obviamente, afeta a todos.” Essa distinção entre uns que decidem e outros que não, na economia, constitui, para Errandonea, uma relação de dominação: “A institucionalização de uma relação social concreta, na qual uns decidem aquilo que diz respeito a outros e/ou a todos, constitui uma relação de dominação.” [Ibid.] Nesse caso, como as decisões envolvidas estão na esfera econômica – dizem respeito à produção e à distribuição –, pode-se dizer que há dominação econômica. No entanto, nas relações sociais de uma determinada sociedade, “a dominação já não é meramente econômica ou política [...], é simplesmente relação de dominação, como configuração estrutural de relações assimétricas [...] e seu conteúdo é econômico, político e de todo tipo. Não há, portanto, dimensões ou fatores, mas instrumentos, ‘braços’ da dominação. Através dos quais certos grupos com elementos de afinidade (que variam de uma sociedade para outra) se apropriam da condução social, a controlam, a dominam. Em cada sociedade existe uma equação particular que faz algumas ordens e alguns mecanismos mais eficazes que outros. E isso serve para tipificar o caso e explicar suas peculiaridades. Em outras palavras, a categoria mais geral para explicar e definir as classes sociais, e que necessariamente implica a exploração, é a dominação.” [pp. 68-69]

Por meio dessa afirmação, Errandonea recoloca a necessidade de a categoria dominação fundamentar a explicação e a definição das classes sociais. A dominação seria uma categoria pertencente ao campo do poder e que abarcaria também a economia; ela envolve, portanto, relações nas distintas esferas: econômica, política etc. O autor considera que as desigualdades estruturais estão ancoradas nas relações de dominação, e, por isso, “a dominação é a explicação geral das estruturas de classe”. [p. 73] A dominação é, portanto, uma categoria ampla e geral, que consegue explicar distintas sociedades, em diferentes fases de evolução, em qualquer tempo e lugar, onde existam desigualdades estruturais. No entanto, conforme observa, tamanha amplitude e generalidade, “sendo muito, é pouco”. [p. 74] Ou seja, ao mesmo tempo em que constitui uma categoria com enorme capacidade explicativa, a dominação tem de ser associada a outras categorias mais específicas, que permitem evidenciar de que tipo de dominação se trata.


DOMINAÇÃO

Para conceituar a categoria dominação, Errandonea parte da definição de Weber, utilizada por autores posteriores como Dahrendorf, e avança a partir dela, chegando à definição de dominação como um tipo de poder que implica a “institucionalização de uma relação social concreta [é, portanto, um fato real e não uma percepção sobre ele], na qual uns decidem aquilo que diz respeito a outros e/ou a todos” [p. 68] A dominação fundamenta-se, portanto, nas relações sociais hierárquicas que envolvem as tomadas de decisão. Colocando essas definições em uma dimensão dinâmica, Errandonea afirma: “A dominação é bilateral, constitui sempre uma relação de dominação, envolve necessariamente dominante (ou dominantes) e dominado (ou dominados); e é normativa, consiste em uma ‘probabilidade’ composta por expectativas mútuas internalizadas – que se tornam comuns –, as quais configuram ‘conteúdos’ possíveis de ordens. Vale dizer que a obediência – com algum grau mínimo de vontade –, tem ‘limite’ na ‘legitimidade’. Esta ‘legitimidade’ é um requisito imprescindível para gerar o ‘consenso’ que toda dominação necessita; que o consenso, ‘por si só, não constitui uma modificação das bases da autoridade’, nem se relaciona com o antiautoritarismo, como existe tendência de se supor.” [p. 76] Assim, para o autor, a dominação não se dá individualmente, nem entre pessoas e coisas, mas somente nas relações sociais concretas, entre pessoas, envolvendo no mínimo duas delas; dominante e dominado, ou, no caso de mais envolvidos, dominantes e dominados. A relação de dominação, que tem na legitimidade um elemento de primeira ordem, pode forjar sistemas de normas, de regulação e controle; entretanto, não é sinônimo desses sistemas que produz e nem das formas jurídicas que podem lhe dar respaldo. [pp. 76-77]

Dentre os fundamentos da dominação estão a legitimidade e a força. Errandonea acredita que, geralmente, para se sustentar, uma relação de dominação precisa ser legítima aos olhos dos dominados, contanto com sua vontade de obediência e apontando para um “consenso” estabelecido cultural ou ideologicamente. Entretanto, quando essa legitimidade, esse consenso, ou mesmo os respaldos jurídicos não são suficientes, a força, a coação física pura e simples é posta em prática. “A coação física é a ‘última ratio’: a dominação não pode ser exercida com base exclusiva e permanente da coação física, mas ela é quase sempre, um ingrediente de respaldo.” [p. 77] “Em última instância, todo sistema de dominação encontra ‘justificativa’ para os dominados na medida em que os níveis de necessidades que cada um percebe como mínimos sejam satisfeitos e que seja possível realizar as aspirações. Nisso consiste a ‘legitimidade’ do sistema. O nível percebido dessa ‘legitimidade’ significa o nível de ‘consenso’ outorgado ao sistema. Todo sistema de dominação, para perdurar, para conseguir uma estabilidade durável, requer consenso. Ao menos um nível importante dele. Ou seja, a aceitação da legitimidade do sistema de dominação por parte da generalidade ou da maioria dos integrantes da sociedade. E esse consenso não é substituível, salvo temporária e precariamente, pela simples força. A coação só é eficiente, institucionalmente, quando dá respaldo a uma ordem consensual e só constitui sua ‘última ratio’.” [pp. 126-127] Torna-se fundamental, nesse sentido, para qualquer relação de dominação que queira perdurar no tempo, uma crença generalizada em sua legitimidade, que permita sua manutenção mais pelo consenso do que pela força. Obviamente, a força é um elemento central, que pode ser utilizada tanto potencialmente (ameaça do uso), quanto concretamente (utilização, de fato), mas a relação de dominação, para ser duradoura, não pode fundamentar-se somente na força.

As relações de dominação possuem fundamentos (legitimidade, força etc.) e se estabelecem nas esferas estruturadas da sociedade (econômica, política, cultural/ideológica), tomando corpo em modos específicos de dominação, que permitem identificar a tipologia dessas relações. Na esfera econômica, “na forma da exploração ou pela mera disponibilidade de riquezas”, na esfera política, o tipo “burocrático ou hierocrático (coação psíquica por administração da salvação)”, na esfera cultural/ideológica, “a alienação cultural”; esses, entre outros, são os modos de dominação que a explicam especificamente.” [p. 77]

A partir dos argumentos colocados, Errandonea elabora elementos fundamentais para a definição e a explicação da categoria dominação, as quais podem ser agrupadas da maneira seguinte. [pp. 78-82] 1. A categoria dominação. A dominação constitui uma relação social que se manifesta por meio das assimetrias nas tomadas de decisão e da conseqüente imposição da vontade de um(ns) a outro(s), o que “implica a limitação da vontade do outro (ou outros) e um excesso de capacidade decisória” que possui incidência além daquele(s) que a exerce(m). 2. A capacidade explicativa da dominação. A dominação explica a desigualdade estrutural e as estruturas de classes. Ela constitui o meio para o acesso diferenciado a tudo aquilo que for distribuído desigualmente em uma sociedade e constitui a categoria mais geral, explicativa e universal das estruturas desiguais e das estruturas de classe. 3. Os agentes envolvidos na dominação. A dominação envolve sempre seres humanos que possuem vontade, consciência e são capazes de estabelecer relações sociais; portanto, não envolve objetos inanimados ou animais. Ela envolve necessariamente dois papeis: “o de dominador e o de dominado”; e, portanto, no mínimo dois agentes, duas partes, dois pontos de vista, cada um de um lado ou em um pólo relacional de uma determinada assimetria. Há circunstâncias em que há mais de dois agentes (individuais ou coletivos) que representam papel de dominadores em uma relação e dominados em outras; nesse caso “poder-se-ia conceber logicamente três papéis do sistema: dominadores sem subordinação, dominadores com subordinação aos primeiros e dominados sem dominação (subordinados aos primeiros e segundos)”. Há também o papel de “exclusão integrativa”, quando se ocupa o espaço social, mas não o integra, apartando-se de suas relações sociais. 4. A contrapartida da dominação. A dominação tem a como contrapartida a participação, entendida como “capacidade de decisão sobre a própria pessoa – essa mesma que se limita pela dominação de outro (ou outros) –, o ‘poder sobre si mesmo’.” “Quanto maior a participação, menor a submissão à dominação”. 5. O lugar e o funcionamento da dominação. A dominação se dá nas distintas esferas (econômica, política etc.) e constitui uma relação dinâmica, com finalidades determinadas, que implica conflito permanente. Assim, deve ser avaliada em termos históricos e geográficos, por meio dos modos de dominação – que explicam essas relações –, ligados, sempre, a uma localidade e um tempo específicos. Seu dinamismo faz com que não possa ser entendida como algo cristalizado, estático; ela não possui uma “inércia estabilizadora”, mas “constitui uma normatização com limites móveis, que existe e se atualiza por seu exercício e pela resistência que a opõe”, ainda que seus próprios mecanismos a respaldem e resguardem. A dominação tem sempre alguma finalidade, ainda que seja o “poder pelo poder”, e, por ser relacional, implica pelo menos uma relação bilateral e posições distintas que correspondem aos diferentes pólos da assimetria, sejam elas percebidas ou não. Há, nesse sentido, “contraposição de pontos de vista e de interesses, de percepção destinada a desenvolver-se”. Reformulando-se constantemente na contraposição dominação-participação, a dominação implica um conflito efetivo e constante determinado pela sua própria dinâmica. O conflito social é permanente, resolvido e reativado constantemente, sem solução definitiva em sua continuidade. “O conflito social é tão ativo quanto a própria dominação e a participação.” Seu processamento e sua renovação constituem o motor da mudança social. Em síntese, pode-se afirmar que a dominação: define-se a partir das relações assimétricas nas tomadas de decisão e na imposição da vontade de agente(s) em relação a outro(s); explica as desigualdades estruturais e as estruturas de classes; envolve sempre relações humanas entre dominadores e dominados; possui a participação como contrapartida; ocorre nas distintas esferas, constitui uma relação dinâmica, com finalidades determinadas e que implica conflito permanente.


SISTEMA, ESTRUTURA E FORÇA SOCIAL

Errandonea acredita “a vida social está determinada, mas de maneira mais complexa do que habitualmente se tende a crer”. [p. 127] Ele considera que “cada sociedade é um sistema. Suas partes estão inter-relacionadas de tal maneira que o que acontece em uma delas possui alguma repercussão nas partes restantes, claramente, em grau variável.” [p. 90] Essa influência/determinação mútua entre distintos elementos relacionados constitui um dinamismo, uma realidade viva e atuante, que implica que “as partes, suas relações e o todo convivam em própria e constante transformação”. [p. 91] O autor define sistema como “um todo dinâmico, composto de elementos inter-relacionados, que se afetam mutuamente de maneira variável, autotransformam-se constantemente, de maneira global e gradual” – uma categoria que, para ele, contém em si a noção de mudança e transformação social. [pp. 90-91]

Num sistema, as partes que o compõem dispõem-se, reciprocamente, como seus próprios elementos e, nesse aspecto, cada sistema constitui-se a partir de uma estrutura. “Para além da abstração que exclui a dimensão dinâmica, essa disposição de partes, de elementos estruturais, como se disse, encontra-se em inter-relação e mútua afetação constante. Portanto, em alteração e modificação permanente, em constante fluir dinâmico. Na realidade, a estrutura separada da mudança, da dimensão dinâmica, não existe. [...] Então, toda sociedade está estruturada. Mas a conceituação que faremos dessa estruturação responderá aos elementos que consideramos relevantes e das noções que elaboraremos sobre eles. Definimos anteriormente – neste nível mais geral – a estrutura social como a ‘conformação de elementos e suas relações mútuas, que resulta de uma abstração de regularidade empiricamente perceptível, considerada relevante no contexto escolhido’. Se fazemos isso, ou seja, se ‘recheamos’ esse conceito com os elementos teóricos que para nós dão conta dessa realidade estrutural, deveríamos dizer que a estrutura social é a configuração do conjunto de relações sociais estáveis e concretas que implicam dominação e/ou participação, presentes em um sistema social.” [pp. 91-92]

As definições do autor da categoria sistema – o todo dinâmico que constitui a sociedade, com relações e influências mútuas – e da categoria estrutura – conjunto das relações sociais estáveis e concretas presentes em um sistema – permitem afirmar que a sociedade constitui um sistema com uma determinada estrutura. A realidade estrutural, e, portanto, sistêmica, varia em cada tempo e lugar, por razão de suas distintas relações sociais estáveis e concretas, que constituem as bases fundamentais da estrutura e do sistema. Essa realidade gerada pelos acontecimentos que envolvem diversos fatores, diferentes circunstâncias e condições e possui, segundo Errandonea, um papel fundamental da ação humana. Não só a ação individual, de algumas pessoas ou dos simples conjuntos de individualidades, mas a ação coletiva, de todos os grupos, do conjunto de agentes e de suas relações na sociedade. Buscando aprofundar essa noção da ação humana e de sua implicação nas relações sociais, Errandonea define a categoria força social: “Por meio delas [das forças sociais] expressam-se as mencionadas incidências, e deve-se fazer a leitura da história social do momento por sua ação recíproca. Uma força social é um conglomerado grupal, com interesse coletivo (geralmente, uma situação comum de classe), com certo grau de capacidade e de vontade para atuar na busca desse interesse, que atua efetivamente, de maneira consciente em função do interesse, o que lhe confere a condição de fator do processo social numa conjuntura específica.” [p. 118] Então, uma força social caracteriza-se como um agrupamento coletivo real que, por meio da capacidade e da vontade, a partir de interesses comuns (que podem ser classistas), dispõe-se a atuar, e de fato atua, convertendo-se em um agente, um ator de um dado momento histórico e de um determinado espaço geográfico – dando corpo a uma ação em alguma das esferas estruturadas da sociedade.

São as forças sociais que, na correlação entre si, determinam os elementos estruturais e a relação entre esses elementos que constituem a estrutura de um determinado sistema. A própria relação entre os elementos estruturais também é responsável pela determinação da estrutura e do sistema. “Numa situação social historicamente concreta, que constitui um momento de um processo, o curso dos acontecimentos depende da equação resultante da ação das forças sociais presentes e atuantes. Ela não é a ‘soma ponderada’ das forças sociais existentes, nem sequer de suas ações, mas o ‘vetor’ resultante de suas respectivas ações na circunstância; com toda a complexa configuração – como ingredientes, além da presença – de sua vontade de ação coletiva, de sua capacidade de organização e mobilização, da eficácia de sua ação coletiva, da adequação dos meios empregados e até da eventual fortuita incidência de circunstâncias e oportunidades que podem aumentar ou diminuir sua eficiência. É a presença, a organicidade, a capacidade, a força e a eficácia das forças sociais existentes que operam como determinantes e como condicionantes do tipo de sistema de dominação e seu funcionamento social.” [pp. 127-128] Assim, a realidade social é o resultado da interação de diferentes forças sociais em jogo, que se movimentam dinamicamente e constituem resultados – aos quais o autor chama “vetor resultante” da interação dessas forças – que constituem estruturas e sistemas, o conjunto da realidade social. Portanto, a realidade, presente ou histórica, deve ser observada, segundo sustenta o autor, a partir do jogo de forças, da correlação dinâmica entre as diferentes forças sociais.

Numa relação de dominação, considera-se que, entre dominadores e dominados, os primeiros possuem maior força social mobilizada e aplicada no conflito e os segundos menos. Num determinado status quo, constituído a partir de uma relação de dominação, há, assim, dois grandes pólos de força – o pólo dominante (que por um motivo ou outro consegue mobilizar e aplicar maior quantidade de força social no conflito) e o pólo dominado (que mobiliza e aplica menor força social). A relação de poder estabelecida entre o pólo dominante e o pólo dominado constitui um status- quo, uma “ordem”, uma estrutura determinada, um sistema – se concebida em termos macro-sociais. Na busca de um avanço cauteloso em relação a um método de análise da realidade que dê conta da correlação entre as forças sociais, Errandonea coloca: “Para tratar de compreender os acontecimentos de um determinado momento histórico, em uma situação social concreta, e também para tentar fazer prognósticos com certa ‘probabilidade’ de acontecimento, parece necessário partir do diagnóstico do tipo de sistema de dominação vigente e seu funcionamento, para em seguida identificar e situar as forças sociais operantes na situação. As forças sociais conformarão uma espécie de equação, travada em sua disputa mútua em uma situação histórica concreta. E nela, os termos dessa equação se configurarão por agregados mesclados ou alianças entre diversas forças sociais. Logo a análise deve prosseguir incorporando aqueles componentes que reduzem ou aumentam a eficácia de cada força social.” [p. 129] Nesse método de análise da realidade social, o fundamental, segundo o autor, é identificar e analisar a interação das várias forças sociais mobilizadas e aplicadas pelos diferentes agentes em suas relações sociais, de maneira a compreender quais são as relações que se estão forjando nas distintas esferas do sistema e quais são os agentes nelas envolvidos e qual o papel que representam em sua estruturação. Nota-se que a categoria força social é central no método de análise do autor.

As inúmeras forças sociais que dão corpo à estrutura do sistema, quando operam na realidade por meio das relações, assumem geralmente “conformações formais, costumam expressar-se por meio de grupos, organizações, associações voluntárias ou outras formações”. [pp. 129-130] Nas distintas esferas da sociedade e segundo as condições dadas, esses conjuntos manifestam mais visivelmente as forças sociais em jogo; na esfera política, por exemplo, diferentes partidos, grupos de pressão etc.; na econômica, empresas, sindicatos etc.; na cultural/ideológica, empresas de comunicação, costumes, moral etc. Errandonea enfatiza que é comum muitos desses atores coletivos terem “atuação em mais de uma esfera com sua própria identificação e organicidade”. [p. 130] O método de Errandonea, que encontra na correlação entre forças sociais o resultado da estrutura sistêmica, implica uma compreensão de que “qualquer realidade concreta é conjuntural” e “o conjuntural e o estrutural intervém como planos sobrepostos, nos quais o primeiro desliza instavelmente sobre o segundo”. Para o autor, não compreender isso, equivaleria “a renunciar a compreender a história cotidiana e concreta”. [Ibid.] Assim, ele não opta pela indeterminação absoluta, e nem pela determinação rígida e mecanicista: “essa determinação é muito mais complexa do que supõem os esquemas habituais”. Continua com uma crítica a outros métodos de análise: “nossas disciplinas estão ainda estão muito atrasadas metodológica e teoricamente para poder resolver satisfatoriamente as dificuldades que essa complexidade nos coloca”. [p. 129]

Errandonea tem por intenção superar métodos de análise que se fundamentam nessa “determinação rígida e mecanicista”, que no seu entender é “ingênua”, e impedem a compreensão adequada da realidade. Para ele, ainda que a noção de determinação sistêmica/estrutural da sociedade seja fundamental, ela não pode ser considerada a partir de leis teleológicas que se colocam fora do campo das relações sociais, da estrutura e do próprio sistema em questão. Seu método, conforme aponta, distingue-se radicalmente do “determinismo mecanicista e simplista de diversas formas de ‘cientificismo’”, que transferem “analogicamente e sem qualquer adequação alguma o modelo das chamadas ciências naturais – seja ele causal, funcional ou, algo mais elaborado, estocástico –, ou do ‘socialismo científico” marxista-leninista”. [p. 128]

O gráfico abaixo sistematiza as categorias sistema, estrutura e forças sociais.



SISTEMA DE DOMINAÇÃO

Viu-se que Errandonea considera “sistema” o todo dinâmico que implica a sociedade, com relações e influências mútuas, e “estrutura” o conjunto das relações sociais estáveis e concretas, entre elementos estruturais, presentes em um sistema. Passando do modelo teórico e relativamente abstrato para casos mais reais e concretos, o autor incrementa seu modelo de análise, conciliando o poder e a economia, por meio da categoria dominação, considerada por ele a categoria mais geral para explicar as desigualdades estruturais, para a “explicação do social”.

Para tanto, introduz a noção de “sistema de dominação”, o qual define como “conjunto de mecanismos que corresponde às diversas fontes e fatores que se combinam em uma determinada estrutura de classes e ao conjunto que elas constituem institucionalmente com as resistências participativas em seu funcionamento histórico concreto.” [p. 89] Os mecanismos são, para ele, “elementos estruturais”, cujo conjunto compõe a estrutura social. Esse sistema está estruturado em bases classistas forjadas por mecanismos (elementos estruturais) que envolvem fontes e fatores e constituem o resultado de um conflito entre forças sociais que interagem mutuamente.

Num sistema de dominação, “a estrutura social é uma estrutura de classes” [p. 92] – as classes sociais e seu papel estrutural são, segundo sustenta, os principais aspectos dessa estrutura social essencialmente classista. Para Errandonea, as classes sociais, definidas a partir da categoria dominação, constituem-se a partir das desigualdades e refletem os efeitos da dominação. Essa abordagem classista da estrutura social não é a única possível; é possível analisar o sistema social e sua estrutura a partir de outras categorias, mas isso não impede o autor de sustentar que: “em nossa perspectiva, esta [a estrutura classista do sistema de dominação] é nossa ferramenta analítica fundamental”. [Ibid.] O conjunto constituído pelas classes e suas relações formam a estrutura social.

Assim como o sistema de dominação, uma estrutura de classes pode ser explicada pela perspectiva do poder (incluindo a economia), a partir da noção de dominação, ainda que “uma categoria tão geral, que tanto abarca, por força lógica, se empobreça de conteúdo como resultado da abstração que supõe”. Isso permite afirmar que há dominação nas relações entre as classes, mas nem toda dominação é uma dominação de classe. Além disso, “o poder em si, por si só, não é uma explicação suficiente do fenômeno das classes, mas somente seu aspecto mais geral”; ele “é um grande ‘continente’ que dá conta dos fenômenos de classes, mas deve ter ‘conteúdos’ nos quais efetivamente se funde a própria dominação”. [p. 87] Ou seja, se a dominação é uma categoria ampla que pode auxiliar a compreensão das estruturas de classe, ela necessita de conteúdos mais específicos que permitam uma explicação mais pormenorizada dessa estrutura.

A cada estrutura correspondem distintas relações de dominação de classe, diferentes mecanismos e fatores que implicam relações econômicas e não-econômicas e que variam, combinando-se e hierarquizando-se de diversas maneiras – recorde-se que nesse método não se considera obrigatória e válida em todos os casos a determinação da economia sobre as outras esferas. “A dominação constitui-se e exerce-se por meio de diferentes mecanismos. Eles estabelecem, por sua vez, o modo de conformação das assimetrias que constituem a dominação e a explicação específica da forma assumida em uma situação e um sistema dados. Esses mecanismos são geralmente vários, estão hierarquizados e entrelaçados mutuamente em cada combinação peculiar. Constituem a equação concreta de um sistema de dominação determinado. E cada um deles corresponde a um fator, a uma categoria (exploração, coação, poder político, alienação cultural etc.). Cada sociedade pode ser caracterizada pela combinação deles, a qual deve dar conta das características diferenciais desses sistema de dominação e de sua estrutura de classes.” [pp. 89-90]

Assim, a estrutura social constitui a resultante das relações entre distintos mecanismos, que implicam dominações que dizem respeito à esfera econômica, mas também às outras esferas estruturadas da sociedade. Cada combinação particular implica, para o autor, que, nas distintas situações, a resultante seja diferente por razão de múltiplas determinações. A estrutura social de um sistema de dominação pode ser de diferentes tipos e operar por diversos meios. Há distintos modos de dominação que podem resultar da exploração, da alienação cultural, do controle político-burocrático etc. “Dificilmente uma relação estrutural de dominação no nível de uma sociedade global” baseia-se “exclusivamente em um deles”. “Tal relação explica-se por uma combinação específica” desses mecanismos, havendo sempre predominância de um ou mais deles na relação. [p. 88]

No que diz respeito às relações entre as classes sociais, essa resultante estrutural é resultado da interação dinâmica das diferentes forças sociais mobilizadas e aplicadas pelas classes sociais no conflito, num contexto de preponderância das forças sociais das classes dominantes em relação às forças das classes dominadas. Essa estrutura implica, nesse sentido, uma superação da resistência estabelecida pelas forças sociais das classes dominadas, as quais podem ou não ter um projeto de participação como contraponto à dominação. O dinamismo caracteriza toda estrutura social, por razão da estrutura de classes e das relações de dominação variarem conforme o tempo e o lugar. Esse dinamismo implica que, na maioria dos casos, uma estrutura social não possa ser explicada somente por um mecanismo/fator; distintas combinações e diversos mecanismos/fatores constituem, em cada sociedade, distintas relações de dominação e diversas estruturas de classes. Assim, uma estrutura social pode ser explicada de várias maneiras, com base na resultante da interação entre os mecanismos/fatores e das relações que neles e entre eles forem estabelecidas.

As relações sociais que constituem a base da estrutura social geralmente estruturam-se institucionalmente, formalizando essas relações em instituições que são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência dessas relações; são estruturadas por elas e possuem capacidade de estruturar.

Esse grande “continente” da dominação, como se refere o autor, permite identificar “conteúdos” em cada tipo de sistema de dominação. “As relações de dominação constituem a rede de uma sociedade classista, de uma estrutura de classes; e, no geral, dela dá conta. Mas, como dito reiteradamente, as relações de dominação operam por meio de um conjunto de mecanismos que constituem o aparato de dominação de um sistema. Esse ‘aparato’, esse ‘conjunto de mecanismos’ resultam da combinação específica de diversos fatores ou meios de dominar os quais denominaremos tipos de dominação: exploração, coação física, poder político etc. Cada um deles constitui meios porque são maneiras de exercer a dominação, ou o acesso a cada um dos quais permite alcançar a possibilidade desse exercício. E também são fatores, porque por meio deles que se gera ou estabelece a relação de dominação. Não necessariamente meios e fatores são os mesmos para uma situação específica: a dominação pode ser explicada fundamentalmente por um fator ou acontecer de seu exercício se dar principalmente por outro meio. Mas a tendência é a coincidência, a consistência para uma dada situação. [...] Todas são maneiras de operar a dominação, todas constituem a relação de dominação, todas são dominação. É lógico que os mecanismos que a implementam respondem aos fatores que a sustentam.” [p. 93]

Definindo melhor os termos empregados, Errandonea afirma que o sistema de dominação é formado por uma estrutura de classes e opera por um conjunto de mecanismos (um aparato de dominação de um determinado sistema) que é resultado de diferentes fatores e meios de dominação (tipo de dominação). Fatores e meios são categorias abertas e historicamente contingentes cujas combinações variam. “A cada forma específica de se combinar os diversos ‘tipos de dominação’ em uma determinada configuração de relações de dominação, chamamos cada equação possível de ‘fatores’ ou ‘meios’ de ‘modos de dominação’.” [p. 94] Modos que consistem na maneira específica de combinação, hierarquização e ligação dos distintos mecanismos, dos diferentes tipos de dominação. Os “sistemas sociais de dominação nos quais prevalece um determinado ‘modo de dominação’ constituem em conjunto um ‘tipo de sistemas de dominação’”. [Ibid.]

Errandonea realiza um raciocínio inicial de alguns tipos de dominação principais, que podem ser reconhecidos, em termos históricos, mais evidentemente. [pp. 95-96] 1. Exploração. Já tratada anteriormente, a exploração prevalece nas “sociedades com economia de mercado e seu papel de determinante quase exclusiva no capitalismo do tipo do século XIX europeu”. Há outros tipos de dominação econômica, menos gerais que a exploração, entretanto. 2. Coação física. Tipo de dominação mais antigo historicamente, constitui a “‘última ratio’ em praticamente todos os sistemas de dominação”. Sua utilização é muito desgastante, tem um alto custo para o poder vigente, não se sustenta no tempo como fundamento único de um sistema. “Os aparatos policial-repressivos e as organizações militares modernas são as manifestações de sua presença atual.” 3. Político-burocrático. Constitui-se pelo monopólio das tomada de decisões que afetam a sociedade de maneira geral, geralmente por meios como governos e sistemas políticos de Estado. No capitalismo do século XX esse tipo de dominação ganha relevância, prevalecendo nos regimes nazi-fascistas, no “socialismo” soviético e em algumas “democracias populares”. Nas democracias liberais do mundo capitalista opera menos evidentemente, por mecanismos que se apresentam como igualitários e livres, fundamentados em regras objetivas que “possibilitam” o acesso de distintos grupos às estruturas de poder – “eleições, sufrágio universal, parlamentos etc.” – que conferem a esse tipo de dominação certa legitimidade. As vantagens para as classes dominantes se dão “na própria desigualdade das estruturas de classes do sistema de dominação e nos próprios mecanismos do aparato partidocrático. Esse tipo de dominação foi fundamental para o desenvolvimento do capitalismo; em relação a ele, a teoria clássica marxista enfrenta significativas dificuldades explicativas. Há certamente, conforme aponta o autor, outros tipos de dominação: “cultural-alienadora, religiosa-hierocrática, propaganda e manipulação da informação etc.” que, segundo acredita, têm uma relevância de segunda ordem nos sistemas históricos mais conhecidos, ainda que tenham também sua importância. Ele acredita que os tipos de dominação apresentados “figuram mais frequentemente entre os mais importantes dos principais tipos de sistema de dominação”. [p. 97]

O gráfico abaixo sistematiza as categorias sistema de dominação, estrutura social e mecanismos/fatores.




DOMINAÇÃO E CLASSES SOCIAIS

Errandonea acredita que a dominação é o “fundamento básico das relações de classe; portanto, da conformação de classes sociais e da própria estrutura de classes em que elas se dão”. [p. 97] Ele inicia sua argumentação aportando elementos que permitem conceituar a categoria classe social, enfatizando que elas estão completamente relacionadas com a assimetria social, a desigualdade, quando esta possui uma conformação estrutural, consistente e estável. Nesse sentido, as classes sociais são “agrupamentos humanos de relativa homogeneidade entre si”, de aspectos, atributos ou elementos distribuídos desigualmente numa determinada sociedade, agregados pelas similaridades que dizem respeito às desigualdades sociais. Entendido dessa maneira, “o conceito de classe é relativo à existência de outras classes”. [p. 98] “A sociedade assume uma estrutura de classes sociais quando a distribuição daquilo que nela existe é desigual. Claramente, não estamos nos referindo exclusivamente aos bens e recursos materiais. Aludimos também a eles, está claro; e não só em termos quantitativos, mas também em termos qualitativos (não somente quantos, mas que tipos de bens; não somente a quantia de pagamento ou remuneração, mas para que profissão, para que tipo de tarefa ou serviço quando se trata de salário; etc.). Mas a referência é mais ampla. Tudo o que se distribui desigualmente: acesso diferencial ou exposição aos meios de coação, poder político, prestígio social, etc. (também aqui em termos quantitativos e qualitativos).” [Ibid.] As classes sociais estão ligadas a tudo o que se distribui desigualmente na sociedade e às coincidências em relação às distintas assimetrias. Em relação a diferentes elementos, há “privilegiados e despossuídos” em seu conjunto, podendo haver situações mais ou menos intermediárias. As classes sociais não se estabelecem por “desigualdades não-consistentes” ou “desigualdades circunstanciais”; trata-se de “desigualdades consistentes, estáveis, institucionalizadas, resistentes. De tal maneira que umas reforçam as outras: são efetivamente estruturais.” [pp. 98-99]

O sistema de dominação estabelece-se sobre relações sociais assimétricas e dispõe de elementos ou partes relevantes para esse ordenamento, constituído por “grandes agrupamentos ou estratos que resultam dos diferentes papéis e funções qualitativos possíveis nas relações sociais de dominação”. [Ibid.] Há conjuntos humanos que possuem papéis e funções de destaque nos mecanismos que determinam o sistema de dominação e esses conjuntos constituem as classes sociais. “A conformação desses conjuntos humanos distribuídos em ‘papéis’ nas relações de dominação – as classes sociais –, e em seu conjunto, constituem a estrutura de classes da sociedade”, a qual é composta de “tipos de classes, ou seja, que cada um desses ‘tipos’ aglutina o conjunto de classes sociais concretas que desempenham esse papel na estrutura de classes”. [p. 100] Nesse sentido, as classes sociais concretas “são conjuntos humanos cujos membros têm em comum a posse de certos atributos adequados, que os habilitam para a inserção no desempenho do respectivo papel”. [Ibid.] Assim concebidas, as classes sociais constituem categorias históricas, variáveis conforme o tempo, podendo aparecer, desempenhar um papel, modificar-se ou mesmo desaparecer. Os tipos de classes constituem “papéis, posições que – basicamente – subsistem enquanto dura o sistema de dominação classista de cuja estrutura formam parte”.

Nesse sentido, Errandonea entende ser necessário “distinguir ‘tipos de classes’ qualificadas como tal pelo papel que desempenham na estrutura de classes, e as classes sociais concretas e históricas, que desempenham um ou (sucessivamente) vários desses papéis”. [Ibid.] A definição descritiva sobre as classes sociais anteriormente realizada diz respeito às classes sociais concretas; a definição de tipos de classes possui um grau maior de abstração e exige que uma teoria que dê conta de uma realidade determinada, específica em questão. “Em cada ‘tipo de classe’ podem aparecer – normalmente aparecem – mais de uma classe social concreta”, coloca o autor. Cada uma dessas classes sociais concretas define-se como tal pelas “características concretas que ela assume na percepção de suas peculiaridades enquanto a distribuição societária desigual [...], em sua condição de fenômeno histórico e singular.” [p. 101] Falar de tipos de classe exige refletir sobre os papéis e funções que cada um desses tipos desempenha na estrutura de classes; ao mesmo tempo, falar de classes sociais concretas exige refletir sobre o conjunto de “atributos que conformam esse conglomerado chamado ‘classe’ [...] e que conduzem esse conjunto ao desempenho de algum dos papéis possíveis na estrutura de classes, a sua inserção nela em um tipo de classe.” [Ibid.] Por isso a necessidade de distinção das duas categorias. Pode-se, assim, definir os tipos de classes sociais como “aquelas classes ou conjuntos de classes sociais concretas, cujos membros desempenham papel similar nas relações de dominação”. [p. 102]

De maneira geral, pode-se dizer que um sistema de dominação fundamenta-se em uma estrutura social classista que envolve classes dominantes e classes dominadas. “Um sistema classista, um sistema de dominação”, coloca Errandonea, “requer pelo menos, universalmente, ambas as categorias”. No entanto, elas não são suficientes para “abarcar os possíveis papéis possíveis que – também de maneira genérica – as classes sociais concretas podem desempenhar em um sistema de dominação”. Para dar conta dos distintos papéis e funções é necessário “desdobrar, separar” as classes dominantes e dominadas, de maneira que se torne possível chegar a categorias operacionais que permitam compreender a realidade social. [Ibid.]

O autor distingue quatro papéis nas relações de dominação: “a.) o exercício – a titularidade – da dominação; b.) a participação na instrumentação da dominação (e, como logo veremos, a competência para acessar o exercício citado); c.) a situação de dominados, integrados essencialmente no sistema de maneira necessária para sua subsistência; d.) a situação de dominados ‘não-integrados’ (relativamente pouco integrados, que não são essenciais para a existência do sistema).” [Ibid.] A partir desses quatro papéis, deduz-se que em um sistema de dominação classista há papéis evidentes de dominadores (a) e dominados (c), e outros (b, d) que constituem parte do sistema, mas que não coincidem completamente em todos os sistemas sociais e podem ou não estar presentes, ainda que normalmente estejam. Isso não significa, entretanto, “que haja socialmente uma situação intermediária entre o papel de dominador e de dominado, com uma lógica própria”. [p. 103] Os sistemas de dominação tendem a desenvolver uma “segregação parcial de certo segmento das classes dominadas para instrumentar sua dominação” [Ibid.], dando a ele (b), em troca, parcelas de autoridade de dominação e de acesso às gratificações diferenciadas – um processo que tende a estimular a mobilidade individual para a ascensão social. No entanto, Errandonea afirma que não há possibilidade real de se abster e de se excluir de um sistema de dominação: “aqueles que o integram, estão submetidos a ele” [Ibid.], inclusive agentes que auxiliam na dominação (b). Pode haver também agentes pouco integrados ou quase excluídos – casos em que a assimetria e a submissão são maiores (d). Para o autor, as categorias “b”, “c” e “d” são de dominados, fundamentalmente pela dinâmica global do sistema. Ainda que Errandonea afirme serem esses quatro papéis comuns em distintos sistemas de dominação, ele coloca que a existência dos três papéis que compõem as classes dominadas (b, c, d) não são inexoráveis. Um sistema pode fundamentar-se apenas nas categorias “a” e “c”. Os quatro papéis nas relações de dominação definidos pelo autor dão corpo ao que ele chama de quatro “tipos de classes” fundamentais: “‘classes dominantes’ (papel ‘a’), ‘classes médias’ (papel ‘b’), ‘classes dominadas propriamente ditas’ (papel ‘c’) e ‘marginais’ (papel ‘d’)” [p. 104] – o que é representado em um gráfico reproduzido a seguir.


Os tipos de classes sociais

Errandonea apresenta, conforme descrito acima, quatro tipos de classes sociais, as quais discute com algum detalhe.

As classes dominantes, define, constituem-se das “classes sociais concretas cujos membros controlam o conjunto dos mecanismos de dominação presentes em uma determinada configuração de relações de dominação, resultante da combinação específica dos meios nelas vigentes para exercê-las”. Assim, são “o conjunto de posições sociais que supõem um acesso permanente e institucionalizado aos mecanismos em relação aos quais se adotam as decisões sociais”. [p. 105] As classes dominantes exercem dominação sobre outras classes na sociedade, tanto nas relações políticas (que envolvem a dominação política-burocrática) como em outras esferas da sociedade, como a economia, que implicam decisões fundamentais. Essas classes “dispõem de meios que lhes permite defender, manter e até aumentar seus privilégios”, o que, na realidade, é seu aspecto mais relevante. As classes dominantes são, portanto, “aquele tipo de classes sociais concretas cujos membros monopolizam o controle básico sobre o aparato de dominação próprio do modo vigente ou prevalecente no sistema de dominação do qual se trata”. [p. 106]

As classes médias, acredita, constituem parte do conjunto das classes dominadas, no sentido amplo, ainda que difiram significativamente dos outros tipos de classes por razão do acesso, mesmo que bastante limitado, a certos mecanismos de dominação que os possibilita instrumentar a dominação e receber alguns privilégios. Esse estrato constitui um tipo de “escada” ou “ponte” de acesso para a mobilidade social vertical e por isso caracteriza-se pelas aspirações de ascensão geradas pela presença nesse campo de “recrutamento para reposição e renovação das classes dominantes”. [Ibid.] Por outro lado, esse estrato também gera lideranças potenciais para mobilizações contrárias às classes dominantes. Constitui-se, portanto, como um estrato que pode, ao mesmo tempo, permitir a mobilidade individual ou dar força às mudanças sociais coletivas. Além disso, esse estrato também apresenta pessoas que faziam parte das classes dominantes e que perderam tal posição. É marcante, por essa heterogeneidade das classes médias, que seja difícil caracterizá-las e conceituá-las; para o autor, a solução teórica envolve “assumir a complexidade real e compreender que as estruturas de classes com certos graus de mobilidade social e de complexidade possuem suas ‘dobradiças’ nesses estratos intermediários”, cumprindo mais de um papel. [p. 107] As classes médias “podem ser definidas por seus papéis de instrumentalidade na dominação e como campo de recrutamento na renovação das classes dominantes”. [p. 108] Quanto mais complexa for a sociedade, acredita, mais numerosas e heterogêneas serão essas classes, dificultando o trabalho teórico de análise. Ainda assim, essa heterogeneidade não permite afirmar a inexistência de elementos comuns: elas são as classes com menos consciência de sua condição social, tendem a assumir modelos de conduta que as aproxime das classes dominantes – as quais aspiram integrar –, possuem horror à possibilidade de decair para estratos mais baixos, buscam afirmar-se, por símbolos de status e evidenciar a distância que as separa desses estratos.

As classes dominadas propriamente ditas são “o conjunto – geralmente muito mais numeroso [em relação ao conjunto de classes dominadas] – daquelas posições sociais caracterizadas por sua subordinação, mas integradas ao sistema e essenciais para sua sobrevivência”. [Ibid.] Elas são dominadas, pois não possuem acesso aos mecanismos de dominação e o fato de serem estratégicas ao sistema os oferece a elas grande capacidade potencial transformador. São as classes “que realmente produzem os bens e serviços que a sociedade produz e acumula” e “sem a sua presença na há dominação possível”. [p. 109] Esse estrato possui duas características fundamentais: uma, também ligada ao acesso e à mobilidade individual para estratos mais elevados, ainda que isso seja considerado mais difícil que nas classes médias, e outra que é a possibilidade de desenvolvimento de estratégias, ações e culturas classistas, em maior medida que nas outras classes dominadas. Entretanto, Errandonea adverte: “a história das classes dominadas no capitalismo evidencia o acontecimento de variantes suficientes para nos prevenir contra a tentação de formulações muito acabadas nesse nível”. [p. 110] O século XX, segundo acredita, teria modificado significativamente as relações de dominação e o próprio proletariado possuiria muito mais a perder que suas cadeias. O autor aponta que, em termos teóricos, a submissão dos dominados adquire a dimensão implicada por sua condição de classe se forem levados em conta os seguintes aspectos: “exclusão da participação, alienação cultural, apropriação de seu tempo, manipulação da informação, repressão de fato e efetiva da dissidência, utilização e acesso à educação, à saúde, à assistência, etc., além do grau de acesso ‘unidimensional’ ao conforto (Marcuse), entre outros”. [p. 111] Enfim, Errandonea define: “entendemos por classes dominadas propriamente ditas o conjunto de classes sociais concretas cujos membros integram o sistema de dominação – e são essenciais a ele – na condição de dominados”. [pp. 111-112]

Os marginais são “conjuntos sociais das classes dominadas (no sentido amplo) caracterizados pelos graus relativos menores de integração e participação, cuja presença não é essencial para a subsistência do sistema”. [p. 112] Essas classes estão menos integradas e participam em menor medida do sistema de dominação, e por isso possuem menor grau de acesso à satisfação de suas necessidades; o acesso a elas é residual e menor do que as outras classes. “Os marginais de uma sociedade não alcançam o nível de satisfação de necessidades socialmente percebido ou considerado como mínimo nela.” [Ibid.] Os marginais, por mais que estejam presentes no mesmo espaço social em que se produzem as relações de dominação possuem uma peculiaridade nessas relações: “subordinação não-integrada relativamente ou não-essencial ao sistema”, [Ibid.] a qual pode assumir distintas variantes em termos de funcionalidade ou desfuncionalidade para o sistema, envolvendo “exército industrial de reserva”, “disponibilidade política”, “potencial desestabilizador” etc., podendo ser sua presença maior ou menor desde que não ameace os fundamentos do sistema de dominação. Nas sociedades mais urbanizadas, os marginais vêm sendo distanciados espacialmente dos centros de poder, vivendo em favelas, cortiços, ocupações e desenvolvendo culturas próprias; nos meios rurais, caracterizam-se pelo isolamento da sociedade global.

Classes sociais concretas

Para Errandonea, as classes sociais concretas envolvem manifestações históricas, geográficas e singulares da realidade descrita. Como colocado no gráfico apresentado anteriormente, essas classes podem ser tipificadas em tipos, papéis e funções e categorias mais globais e universais. As classes sempre apresentam duas características: a bilateralidade e a concreção relacional; estabelecem-se em relações sociais concretas e assimétricas. “Essa relação social concreta assimétrica se deve a algo, resulta de certo fator ou fatores ou opera por meio de determinado meio ou meios; geralmente fatores-meios.” [p. 115] Ainda que essa relação seja singular ou combine vários fatores-meios, a determinação dessa assimetria é sempre específica. “Cada relação de dominação tem uma determinação específica, que dá conta dela concretamente. Outras relações de dominação têm outras determinações também específicas.” [Ibid.] Essas determinações podem se dar nas relações econômicas, políticas, culturais, envolver exploração, coação, alienação etc., ou mesmo uma combinação delas, o que é mais freqüente.

A conformação histórica, geográfica e singular das classes sociais concretas, pelo método de análise de Errandonea, como se viu, não se dá somente por razão de um determinismo estrutural, infra-estrutural; contam significativamente para essa conformação “as circunstâncias resultantes da atuação dos homens e dos grupos sociais envolvidos, da conformação de forças sociais que resulta dessa atuação, da correlação de forças resultante”. [Ibid.] E nesse sentido, as forças sociais tornam-se elementos fundamentais para a compreensão das relações de dominação de classe.

O autor avança assim para conceituar as classes sociais concretas que são, assim, definidas como “o conjunto de pessoas que têm uma situação relativamente igualitária em tudo aquilo que se distribui desigualmente na sociedade, e, por isso, situa-se em posição similar nas relações concretas de dominação com idêntica determinação específica”. [p. 116] Essa “igualdade relativa frente às desigualdades sociais estáveis” estão relacionadas a cada contexto social determinado e, portanto, às “circunstâncias da sociedade que se trata e das condições que ela assumir em termos de produção, governo e organização social em geral”. [Ibid.] “Senhores, escravos, senhores feudais, servos, burgueses, proletários, camponeses, latifundiários, tecnoburocratas, etc. são classes sociais concretas, historicamente singulares. São produzidas por determinados sistemas de dominação nos quais elas cumprem certos papéis ou funções, segundo as condições e circunstâncias se reproduzirem. Mas a própria dinâmica da sociedade leva essas classes a serem substituídas historicamente, transformadas e a desaparecerem. Tudo o que define o status teórico da noção. A partir da equação peculiar e diferencial ‘acesso – não-acesso’ (quantitativo e qualitativo) que caracteriza e define uma classe social concreta, resultam os atributos para sua inserção na estrutura de classes; esses atributos podem ser definidos por essa equação. Para dizer de outra maneira: em uma relação social concreta de dominação, seus termos e os sujeitos, que ocupam as posições a partir das quais se envolvem na relação, estão por ela integrados à sociedade com as condições determinantes – geográficas, históricas, de circunstância – da sociedade que dão a eles sua especificidade.” [Ibid.]

Dessa maneira, a teoria de Errandonea estabelece as linhas gerais para que se possa determinar as classes sociais concretas de cada sociedade. Para isso, é evidente que rechaça os esquemas que desconsideram a história, a geografia e a conjuntura na discussão das classes sociais. A partir da equação colocada pode-se, em cada sociedade, estabelecer uma estratificação determinada e chegar às classes sociais concretas e às próprias relações existentes entre elas.


CONFLITO SOCIAL, LUTA DE CLASSES E MUDANÇA SOCIAL

Conforme colocado, para Errandonea a “contrapartida da dominação é a participação, que constitui seu limite”. “No limite”, afirma, “a participação máxima generalizada que consiga substituir totalmente a dominação, que a reduza à inexistência, implicaria uma sociedade igualitária”. [p. 122] O autor define a participação “como a capacidade de incidência e iniciativa própria nas decisões que lhes afetam, pessoal, grupal ou coletivamente”. Isso diz respeito a “todo tipo de decisões: no sentido mais amplo. O conceito tem todo o sentido abrangente da própria dominação: é seu oposto”. [Ibid.] A institucionalização do poder constitui-se a partir de duas variáveis: a dominação e a participação; por meio de um processo dinâmico, os sistemas de dominação conciliam relações de dominação preponderantes, e, na maioria das vezes, algum nível de participação, fundamental para o sistema possuir legitimidade.

O autor sustenta que “cada situação de classe corresponde a um certo conjunto de interesses que podemos denominar ‘interesses de classe’”, os quais podem ou não ser percebidos como tais ou serem considerados vontades estritamente individuais ou grupais. Esses interesses dividem-se em dois: “a.) a satisfação das necessidades socialmente percebidas como mínimas” e “b.) a aspiração para melhorar o nível delas”. [pp. 123-124] As necessidades são consideradas amplamente em ambos os casos e, no segundo, inclui o acesso a situações de classe superiores àquela em que se está inserido. Acima do teórico nível absolutamente mínimo de necessidades de uma pessoa, há sempre um nível socialmente percebido como mínimo, que varia histórica e geograficamente e também entre as próprias classes sociais. O autor considera ser necessário diferenciar esse nível mínimo socialmente percebido das aspirações; estas constituem, para ele, o desejo de superar o nível possuído, seja qual for ele – nesse sentido, as aspirações devem ser compreendidas como “tendências volitivas de superar o nível possuído de satisfação das necessidades e aquele percebido socialmente como mínimo”. [Ibid.] Entre as aspirações, inclui-se a maior delas: a de ascender aos níveis de satisfação das classes superiores, ou seja, a ascensão de classe. Ainda que o nível de necessidades socialmente percebido como mínimo e as aspirações sejam variáveis e dinâmicos, pode-se dizer que há um movimento constante: todos os membros de uma sociedade têm aspirações e, no momento em que elas se concretizam e se estabelecem, sendo percebidas como necessidades mínimas, é natural que se desenvolvam outras aspirações. Ainda que se possam perceber os interesses de classe como concepções individuais, Errandonea afirma: “seu desenvolvimento é cultural e sua internalização é social e de classe”. [p. 125] Isso significa afirmar que, ainda que os interesses não sejam completamente determinados pela posição dos agentes (sistema e estrutura em que estão inseridos socialmente), mesmo que esses interesses possam ser alterados cultural e ideologicamente, eles possuem sua significativa influência. Assim, a posição dos agentes em uma determinada estrutura de classes e em um sistema de dominação possui uma determinação significativa de seus interesses; há, portanto, interesses de classe, ainda que eles possam ser latentes ou manifestos, caso em que se poderia chamá-los de consciência de classe.

O aumento da satisfação das necessidades – tanto das percebidas como mínimas como as que envolvem aspirações – é possível por meio do crescimento daquilo que está distribuído socialmente; o fato de os interesses se colocarem como compatíveis ou contrapostos dependerá da satisfação dessas necessidades. Num sistema de dominação, que implica uma estrutura de classes, envolvendo desigualdade nas relações de poder, o autor acredita que “a tendência é a percepção de contraposição. Portanto, o sistema de dominação em funcionamento supõe a presença ativa e contraposta de interesses sociais de classe dos seus membros. Os atores participam do conflito que essa contraposição supõe. Com diferentes graus de aceitação da contraposição e da representação que pode colocar-se sobre ela.” [Ibid.] Esse desenvolvimento social dos interesses existe, independente de serem compreendidos e demonstrados em termos individuais, grupais ou classistas. Nos dois primeiros casos (interesses compreendidos e demonstrados em termos individuais e grupais), eles associam-se ao progresso particular, de mobilidade de indivíduo ou de grupo, possibilitado pela estrutura de classes. Esses interesses entram em jogo pela crença na legitimidade do sistema de dominação ou pela busca de “jogar com as regras do jogo”, visando modificar a posição dos agentes na estrutura e no sistema de dominação – não envolvem, portanto, a modificação do sistema de dominação e de sua estrutura de classes como um todo. No terceiro caso (interesses compreendidos e demonstrados em termos classistas), eles dizem respeito a uma classe ou conjunto de classes determinado que compreende que esses interesses só podem ser buscados com eficácia coletivamente. A tendência de que se prevaleça uma ou outra representação dos interesses (individual, grupal, classista) depende, segundo o autor, do nível de satisfação, proporcionado pelo sistema, no que diz respeito às necessidades socialmente percebidas como mínimas e à manutenção do acesso às aspirações; nesse caso, ambas as condicionantes devem ser percebidas pelo amplo conjunto dos agentes da sociedade. Os interesses de classe se traduzem “na manutenção e na melhoria do nível participativo, e na manutenção e no incremento da dominação, para as situações de classes implicadas.” [p. 124] “Os dominadores procuram não só manter, mas aumentar seu domínio (e, portanto, reduzir a participação dos dominados)”, ao mesmo tempo, “os dominados procurarão aumentar sua participação (diminuir sua condição de dominados), as quais são tendências estruturais contraditórias dos interesses respectivos”. [p. 133] Isso ocorrerá, coloca, a não ser que o aumento da capacidade de satisfação das necessidades e a percepção da real da possibilidade de atingir suas aspirações, para os dominados, diminuam as contradições e mantenham a legitimidade do sistema; ou então que os dominadores, para se preservarem como tais, flexibilizem de alguma maneira o sistema, de maneira a abarcar alguns interesses sociais dos dominados, de maneira a postergar o acirramento da luta de classes.

Como se viu, os interesses que não se transformam em forças sociais não têm condições de modificar o sistema de dominação e sua estrutura de classes, ainda que esses interesses possam gerar consciência e questionamentos da legitimidade do sistema e de sua estrutura. Entretanto há relação significativa entre os interesses de classe e o poder, mais especificamente naquilo que diz respeito à manutenção ou à mudança da ordem, do status-quo.

Errandonea define conflito social como “toda relação social de oposição manifesta entre atores sociais que se traduz em ações concretas orientadas em contraposição mútua”. [p. 130] Com essa definição, ele exclui a predisposição antagônica de oposição e coloca o conflito no campo das relações sociais que implicam “ações reciprocamente orientadas de cada um dos atores contra ele ou contra os outros”. Assim, o conflito envolve grupos, classes, indivíduos em certas posições sociais, etc. Para ele, todas as oposições evidentes de forças sociais constituem conflito. “Os interesses sociais que correspondem às posições da estrutura social, que se contrapõem mutuamente, constituem as bases de motivação do conflito.” [p. 131] Para o autor, os conflitos sociais podem ser classificados a partir de diferentes critérios: identificação dos agentes em contradição, nível de violência ou intensidade, objetivo dos agentes, entre outros. Sua opção é trabalhar com quatro critérios para essa classificação: a.) tipo de agentes: de um lado aqueles que se dão entre indivíduos, pequenos grupos ou organizações não-classistas, de outro, aqueles que se dão entre forças sociais de origem, filiação ou recrutamento classista; b.) objetivo para com o agente contraditor: de um lado, o conflito que propõe a eliminação (desaparecimento da estrutura), por outro, aquele que busca acesso a certos objetivos para benefício próprio – ele chama o primeiro de luta e o segundo de concorrência; c.) direção do conflito: de um lado, o conflito horizontal, que não se propõe alterar a estrutura de classes do sistema de dominação, mas melhorar a posição dos agentes dentro dessa estrutura, por outro, o conflito vertical, que possui o objetivo de modificar a estrutura e o sistema; d.) institucionalização ou não-institucionalização: por um lado, o conflito institucionalizado, o qual se dá com a aceitação dos agentes das regras do jogo proporcionadas pela estrutura sistêmica para sua solução, por outro, o conflito não-institucionalizado, que se dispõe a utilizar meios que não são aceitos pelo agente contraditor, não havendo, nesse caso, uma regulação comum aos agentes em conflito. [pp. 131-132]

“Os conflitos não-classistas, a competição, os conflitos horizontais e os institucionalizados, não só não contradizem o consenso [legitimidade do sistema de dominação e da estrutura de classes], mas o supõem e tendem a reforçá-lo. Ao contrário, os conflitos entre forças sociais classistas, a luta, os conflitos verticais e os não-institucionalizados, em cada caso com variantes que devem ser consideradas, implicam em algum nível o questionamento da legitimidade do sistema de dominação ou da relação de dominação concreta em questão, e tendem a produzir – quando não envolvem diretamente – um questionamento do consenso do sistema.” [p. 132] A questão dos conflitos, portanto, coloca-se entre o reforço da legitimidade do sistema de dominação ou em seu questionamento e é a partir do conceito de conflito social que o autor elabora sua noção de luta de classes. Errandonea considera que quando os interesses de classe são compreendidos e demonstrados em termos classistas, quando se aumenta o nível de consciência de classe, quando a capacidade e a potencialidade convertem-se em força social concreta, “o conflito social tende a convergir e converter-se em conflito ou luta de classes”. [p. 126] Para ele, a luta de classes é o “conflito social que constitui luta vertical, não-institucionalizada entre forças sociais classistas procedentes de tipos de classes opostas”. [pp. 132-133] A luta de classes coloca em xeque o sistema, tanto no que diz respeito à correlação de forças, como em relação à sua legitimidade; diferentemente, os conflitos não implicados na luta de classes (conflitos não-classistas, competição, conflitos horizontais e institucionalizados) servem para legitimar o sistema e sua estrutura.

Para Errandonea, a dinâmica do conflito social de classes faz com que os atores “que operam de fora do ‘sistema’, com tendência a se opor a ele, tendam a conformar entre si, com maior ou menor claridade de definição, um sistema paralelo e contraposto ao ‘sistema’” – o qual é chamado por ele de “contra-sistema”. [p. 134] Um contra-sistema não necessariamente surge por razão da falta de legitimidade do sistema ou pelo baixo nível de consenso; ele é uma tendência estrutural das sociedades complexas e nos casos de alta legitimidade e amplo consenso, ele pode tornar-se um interlocutor válido, com o qual os conflitos são mediados institucionalmente. “O contra-sistema constitui a concreção organizada, o ‘iceberg’ consciente estruturado a partir das forças sociais das classes dominadas.” [p. 142] “O contra-sistema, então, não é necessariamente ‘disfuncional’ à estabilidade do sistema. Mas sua definição mais clara, sua crescente organicidade, sua coesão, sua força e, sobretudo, a radicalização de seu questionamento ao sistema são ‘disfuncionais’, implicam um questionamento do consenso, constituem uma ameaça à estabilidade e à continuidade do sistema de dominação. No limite, pode constituir o ‘sistema’ que substituirá aquele que decai.” [p. 135] Em todos os casos, coloca Errandonea, os contra-sistemas são agentes da mudança social e funcionam como propulsores dinâmicos da sociedade. Suas propostas inovadoras podem ser absorvidas ou neutralizadas pelo sistema; no caso de não poderem, há uma mudança social no sistema.

Para o autor, mudança social é “toda modificação, alteração ou transformação [da] estrutura social, qualquer que seja sua magnitude, alcance ou velocidade de acontecimento”. A mudança social é aquela que a afeta e transforma a estrutura de classes de um determinado sistema. [p. 137] Pode implicar mudança no sistema – mudanças cotidianas que não afetam os aspectos fundamentais do sistema e sua identidade (reformas) – e mudança de sistema – alterações profundas das bases e das relações de dominação (revolução); a partir de agora, se adotará o termo “mudança social” para as mudanças no sistema e “transformação social” para as mudanças de sistema. [p. 138] Errandonea sustenta que a transformação social pode ou não ser o resultado de diversas mudanças sociais; elas não necessariamente estão em contraposição. A transformação social ocorre, segundo o autor, quando os conflitos sociais tornam-se luta de classes, extrapolam as esferas e generalizam-se ao conjunto das relações sociais concretas. Isso implica que um contra-sistema tenha sido criado dentro do próprio sistema de dominação, desenvolvendo um projeto de contraposição, com sustentação ético-ideológica, propostas concretas e planos de ação. A transformação social é resultado de um contra-sistema que consegue elaborar esse projeto alternativo, colocando-o como uma opção real ao sistema vigente, e, concretamente, modifica as relações sociais no sentido proposto.


* Alfredo Errandonea. Sociologia de la Dominación. Montevideu/Buenos Aires: Nordan/Tupac, 1989.

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