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Um programa para a Revolução

category internacional | miscellaneous | opinião / análise author Wednesday June 01, 2011 18:43author by Manuel Baptista - (em nome individual)author email manuelbap2 at gmail dot com Report this post to the editors

Ao escrever este texto não é nossa pretensão escolher e muito menos ditar, em nome de hipotéticas e abstractas «massas», um programa para a revolução que há-de vir.


Um programa para a Revolução


Ao escrever este texto não é nossa pretensão escolher e muito menos ditar, em nome de hipotéticas e abstractas «massas», um programa para a revolução que há-de vir.

Com efeito, uma revolução está em curso em vários pontos nevrálgicos da Europa, cujos primeiros episódios estão à frente dos nossos olhos, na Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália, França, Grã-Bretanha, etc. Esta revolução à semelhança de muitas outras está a sacudir o «velho continente», mas diferentemente de muitas outras não é protagonizada por líderes carismáticos ou por organizações apostadas em tomar o poder de Estado, mas antes é expressão de um difuso - mas muito forte - sentimento de rejeição dos valores da sociedade burguesa e de alguns dos seus mais emblemáticos mitos. Não é um «partido de vanguarda», é a juventude descontente, revoltada, com razão, que se ergue reclamando o direito que lhe assiste de determinar o seu próprio futuro, sem chefes, sem ideologias abafantes, mas com alguns princípios claros de partilha, de igualdade, de justiça e de liberdade, frente a uma lógica de destruição de um capitalismo totalmente cego às necessidades humanas, às legítimas aspirações das pessoas, atirando para a miséria incontáveis milhões pelo mundo fora, fomentando guerras terríveis mas que são fonte de lucro para alguns gigantes do complexo militar/industrial, com o desplante de afirmarem que o fazem para defender a «democracia» e os «direitos humanos»!

Mas não há nenhuma revolução que ande para a frente sem um programa, seja ele explícito ou não. Caso não o seja, é mais sujeita às derivas, a ser traída por líderes carismáticos que se venham a afirmar no decurso dos seus episódios e, portanto, será menos provável que as pessoas comuns, com consciência e vigilância, mantenham controlo sobre o curso dos acontecimentos que se vão desenrolando a ritmo acelerado. Porque uma revolução genuína é - em si mesma - uma enorme prova de maturidade de um povo, de generosidade, abnegação e firmeza, sendo isso apenas possível se esse povo, colectivamente, está consciente não apenas da velha ordem que está derrubando, como do futuro que deseja construir.

Na verdade, a revolução, actualmente só pode ser anti-capitalista. Não existe outra saída, porque o capitalismo é igual a destruição ambiental, miséria, desigualdades abismais, total desnaturação de regimes democráticos, de que apenas restam os aspectos formais e mesmo esses, sujeitos às maiores distorções, em caso de risco iminente para as classes possuidoras.

O maior perigo de uma revolução é ficar isolada. Isso acontece porque as pessoas comuns se amedrontam e julgam que aquilo que possuem, seus parcos haveres, o seu escasso ganha-pão, estão em risco, perante a instabilidade derivada de uma situação revolucionária. Ora, a primeira coisa a fazer, nestas circunstâncias, é demonstrar de forma clara que é a classe opressora que empurra para a revolução, que é ela que cria as condições para as pessoas sentirem desespero. É condição necessária, as pessoas comuns deixarem de acreditar nas patranhas que lhes falam diariamente pelas televisões e por todos os canais sob controlo dos poderes. É portanto fundamental convencer da verdade deste facto, pois só assim as pessoas se mobilizarão e participarão pela transformação efectiva e por todos os meios necessários. Para salvaguardar as suas vidas, a sua subsistência e a subsistência de seus filhos, farão os sacrifícios necessários, gastarão tempo e energias, subtraindo-os ao seu repouso e lazer, porque compreendem que têm toda a vantagem individual e colectiva em que seja assim, portanto sem coação de qualquer espécie.

A autonomia dos indivíduos e colectivos deve sempre ser preservada no decurso das acções. A democracia assembleária deve ser desenvolvida, não havendo outra maneira de o fazer senão pela prática. Mas como generalizar essa prática assembleária? As iniciativas que despontam com características amplas, abertas, públicas, vão no bom sentido. É mesmo um aspecto constitutivo deste movimento europeu e mundial. Não se permite que algum grupo, alguns indivíduos «iluminados» anexem a voz e a iniciativa das assembleias, havendo sempre o maior respeito pelos que nelas participam, tendo sempre como finalidade chegar ao maior consenso possível para a acção, como forma de preservar a unidade e a eficácia global do movimento. As discussões podem parecer - por vezes - enfadonhas ou pouco interessantes a pessoas muito motivadas para intervenção política, mas o que é facto é que as pessoas comuns, «não políticas», têm aí oportunidade de se exprimirem realmente, não apenas de extravasar o seu sentimento (o que podem fazer em qualquer programa de rádio ou televisão dito «interactivo») mas sobretudo de influir nos outros directamente, de influir no decurso de uma discussão. Portanto, haverá um «apoderamento» (empowerment) das pessoas, transformando-as de seres passivos em activos, protagonistas de seu próprio destino. Caso não tenha este aspecto, poderá ser um golpe de Estado, ou outra coisa qualquer, mas não pode ser qualificada de revolução.

A presente geração não tem qualquer «fé» na bondade do capitalismo, mesmo nas suas roupagens mais «modernaças», tendo também repudiado a falsa alternativa do «socialismo de caserna» ou seja do capitalismo de Estado que lhes foi vendido durante demasiado tempo como sinónimo de socialismo ou comunismo. Por isso mesmo importa sublinhar que existe uma alternativa concreta e realizável sem sacrifícios inúteis quer ao capitalismo privado, quer ao capitalismo de Estado. Essa alternativa chama-se socialismo autogestionário. Chama-se auto-organização dos produtores (no sentido amplo, que engloba também os que produzem serviços e não apenas os que produzem os bens materiais). Foi repetidas vezes ensaiado, com maior ou menor sucesso, mas muitas vezes com resultados económicos notáveis, nas condições mais difíceis (exemplos: Revolução de Espanha de 36-39, Pós 25 de Abril em Portugal, autogestão em empresas abandonadas pelos patrões, fenómeno que se repetiu na Argentina em 2001 e originou a construção de um sector cooperativo que tem mantido há dez anos uma dinâmica muito interessante). Mas também - e isto em todos os sectores, desde agricultura à indústria e serviços - podem-se encontrar empresas cooperativas, que funcionam seguindo princípios internos não capitalistas, visto que a decisão sobre os destinos e funcionamento das mesmas cabe a uma Assembleia Geral, cujo princípio é um sócio = um voto, ao contrário das sociedades capitalistas, onde o princípio é cada sócio ter um voto proporcional à parte do capital que detém. A autogestão generalizada, ou aplicação do princípio cooperativo é a alternativa à expropriação que os capitalistas fazem em proveito próprio ou a expropriação estatal que designam de «nacionalização» (deviam chamar antes de governamentalização, mas claro, assim deixava de ser apelativo!) que os leninistas (disfarçados ou não) continuam a propor como programa económico básico.

O Estado é encarado de forma muito confusa por alguns. A teoria do Estado faz parte da essência da discussão política, pelo menos desde Maquiavel (princípio do século XVI), não podendo ser de todo ignorada por alguém que tenha pretensão a uma cultura política e portanto capacidade de intervenção esclarecida. Ora, a teoria de que o Estado é uma espécie de super árbitro que evita a «guerra de todos contra todos» (Hobbes) é a teoria implícita, que é avançada vezes sem conta, como se isso fosse uma verdade insofismável. Obviamente, porém, sabemos que o Estado é uma organização ao serviço de uma classe (ou conjunto de classes, ou sectores dessas mesmas classes). Não existe Estado, nem organização centralizada do poder nas civilizações anteriores à economia agrária (neolítico). Porém, a humanidade viveu florescente durante todo o paleolítico ou seja cerca de duzentos mil anos de História da humanidade (enquanto a agricultura e primeiras civilizações urbanas estão datadas de há cerca de apenas dez mil anos!). O Estado é produto de uma sociedade dividida em classes, portanto, não se poderá extinguir de uma penada. Mas o poder de Estado deve ser diminuído e não reforçado, como leninistas e social-democratas pretendem nos seus programas e posicionamentos teóricos. As suas propostas deixam muitas vezes implícito que há que reforçar o «Estado revolucionário» após a sua tomada pelo partido ou pela vanguarda (versão leninista) ou após a sua conquista pelo voto (versão social democrata).

Porém, o chamado «Estado social», ou «Estado providência», não é um fim em si mesmo, nem o pode ser, para alguém com consciência não-autoritária e socialista. Embora muito importante no presente, como resguardo das classes oprimidas para lhes permitir sobreviver no meio de uma crise provocada e conduzida desde os grandes centros da finança internacional, esse «Estado social» é também o meio da burguesia conter as massas desapossadas dentro dos limites. Assim, proporciona as condições básicas para que a exploração prossiga, mas sem o perigo das coisas tomarem um rumo revolucionário, por os pobres «nada mais terem a perder, do que as suas grilhetas».

O Estado deve ser encarado tal como é, na sua natureza dúplice: como meio de coação sobre o povo por parte de uma auto-proclamada elite dirigente, e – simultaneamente - como provedor de serviços públicos essenciais, tais como: a rede de transportes e outras infra-estruturas, incluindo a sua manutenção, os cuidados de saúde, a educação. São sobretudo os sectores indispensáveis ao funcionamento da sociedade, mas não rentáveis ou insuficientemente rentáveis para o capitalismo. Note-se que empresas de transporte público (comboios, metro e autocarro), fornecedoras de electricidade, de água, etc., foram nacionalizadas e assim mantidas, durante regimes/governos de direita ou conservadores durante o século passado, porque eram deficitárias, transferindo assim para o povo, através dessa «nacionalização dos défices», do custo de uma exploração de um serviço essencial, porém sem grande hipótese de produzir lucro.

Essa nacionalização dos prejuízos foi escandalosamente feita recentemente com bancos (em vários países europeus, não apenas em Portugal) que se encontravam à beira da insolvência, sendo o Estado (os contribuintes, portanto) os garantes agora das dívidas contraídas pelos bancos sob a responsabilidade de administradores, havendo mesmo indícios claros de operações criminosas, para enriquecimento pessoal destes.

Para providenciar bons serviços públicos, a administração pública, os serviços devem ser geridos colectivamente, sob a vigilância de mandatários eleitos directamente e por delegação de organizações. Assim, os utentes de um hospital, por exemplo, teriam os seus representantes escolhidos democraticamente, nos órgãos de gestão do hospital, a par dos representantes do pessoal que aí trabalhe (pessoal médico, de enfermagem, técnico, administrativo, auxiliar). Essa gestão teria um conselho geral que elegeria um executivo entre os seus membros. Assim, como em relação a outras instituições, haveria sempre uma democracia de base e as decisões seriam tomadas ao nível dos próprios interessados na resolução dos problemas, ou pelos seus directos mandatários, obviando as cadeias hierárquicas, os autoritarismos decorrentes de ser um indivíduo ou um pequeno grupo a exercer o mando sobre os destinos de muitos, laborando ou utilizando os serviços de determinada instituição.

Não haveria portanto a imediata abolição do Estado, enquanto fornecedor de serviços, visto que isso não traria nenhum benefício às presentes e futuras gerações. A retirada do Estado enquanto fornecedor de serviços, aliás, é o que querem os ultra-liberais. Querem o Estado reduzido às suas funções de «soberania» (as forças armadas e policiais, a justiça, o governo central…), sendo tudo o resto apenas obra da «iniciativa privada» (leia-se: destinado à voragem dos grupos capitalistas).

Haveria uma profunda mudança da natureza do estado, do seu funcionamento concreto, com a generalização de métodos democráticos de gestão em todos os serviços e a todos os níveis.

Muito mais se poderia acrescentar a um esboço de programa como este, porém, apenas se pretendeu com este documento desencadear a reflexão/debate, com vista a encontrar consensos, os quais por sua vez serão a base sobre a qual irá assentar a tomada de decisão. Sem um programa não há estratégia! Sem estratégia não há vitória possível! Queremos realmente a revolução? Desejamos realmente que ela venha a acontecer no decurso das nossas vidas? Então não podemos deixar de reflectir e decidir sobre as matérias delineadas acima, sobretudo encontrando vias de realização prática das ideias enunciadas.

Obrigado pelas críticas, sugestões, emendas e acrescentos que queiram fazer. Obrigado também por colocar em circulação este documento, dando-o a conhecer às pessoas que, como vós, anseiam / sonham com uma forma ou outra de emancipação, com a abolição do capitalismo, o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, livre e igualitária.

Manuel Baptista

author by Manuel Baptistapublication date Sat Jun 04, 2011 20:56author address author phone Report this post to the editors

Não se costuma equacionar bem a questão-chave da articulação da democracia de base com o federalismo. No federalismo, formam-se assembleias, a partir das entidades colectivas de base, federadas: o mandatário de um grupo de base está vinculado por quem o elegeu a defender tal ou tal posição. Sabe que tem de prestar contas, frequentemente, a essa assembleia de base. Portanto, embora isso não elimine, diminui bastante a possibilidade de abusos de poder. Tanto mais que pode o mandatário ver o seu mandato retirado pela instância que o elegeu. Não é nada parecido, na substância, com um deputado de um parlamento.

Muitas pessoas não conseguem compreender a articulação entre vários níveis, porque pensam que, se existem vários níveis, então seria um sistema «hierárquico». Para clarificar a discussão, deveria reservar-se o uso da palavra «hierárquico» para quando existe um poder de cima para baixo, quando há não-eleição dos chefes pela cidadania, ou quando os cidadãos não possam exercer o controlo sobre o desempenho dos eleitos (este é o caso duma democracia dita representativa).

Penso que um programa para a revolução não deve esmiuçar estes pontos. Deve enunciar princípios gerais e dar elementos que permitam antever como poderão ser aplicados na prática. Ou seja, deve refrear a tentação de traçar um «plano» ou «modelo» da sociedade pós-revolucionária.

 
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