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Os Movimentos Sociais e a Organização Popular

category brazil/guyana/suriname/fguiana | movimento anarquista | policy statement author Tuesday December 02, 2008 19:55author by Federação Anarquista do Rio de Janeiro - FARJ Report this post to the editors
Neste momento, buscaremos discutir os movimentos sociais, suas desejáveis características e formas de atuação, além de como eles podem contribuir na construção no desenvolvimento da organização popular.

ANARQUISMO SOCIAL E ORGANIZAÇÃO

OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A ORGANIZAÇÃO POPULAR

É o próprio povo, são os famintos,
são os deserdados os que têm de abolir a miséria.
Ricardo Flores Magón

Organizar as forças do povo para realizar tal revolução [social],
é o único fim daqueles que desejam sinceramente a liberdade.
Mikhail Bakunin

Favorecer as organizações populares de todos os tipos é a conseqüência
lógica de nossas idéias fundamentais e, assim, deveria
fazer parte integrante de nosso programa.
Errico Malatesta

Mencionamos, algumas vezes, anteriormente, a organização popular e nossa expectativa em relação a ela. Já definimos que seu objetivo é “superar o capitalismo e o Estado, e, por meio da revolução social, construir o socialismo libertário”, e por isso a entendemos como verdadeira protagonista no processo de transformação social. Também mencionamos que o nível em que se desenvolvem os movimentos sociais e no qual se deve buscar a construção e o aumento de força social da organização popular é o que chamamos de nível social. Neste momento, buscaremos discutir os movimentos sociais, suas desejáveis características e formas de atuação, além de como eles podem contribuir na construção no desenvolvimento da organização popular.

Ao tratarmos deste nível social, devemos pensar nas possibilidades do povo, que deve ser o grande agente da transformação social proposta por nós. É inegável que há uma força social latente nas classes exploradas, mas entendemos que é somente por meio da organização que esta força pode sair do campo das possibilidades e tornar-se uma força social real. A questão se coloca, então, da seguinte maneira:

É verdade que há [no povo] uma grande força elementar, uma força sem dúvida nenhuma superior à do governo, e à das classes dirigentes tomadas em conjunto; mas sem organização uma força elementar não é uma força real. É nesta incontestável vantagem da força organizada sobre a força elementar do povo que se baseia a força do Estado. Por isso, o problema não é saber se eles [o povo] se podem sublevar, mas se são capazes de construir uma organização que lhes dê os meios de chegar a um fim vitorioso – não por uma vitória fortuita, mas por um triunfo prolongado e derradeiro.[95]
A partir da organização e de sua aplicação no campo prático, esta força cresce exponencialmente, oferecendo a possibilidade real de combate ao capitalismo e ao Estado. Isso porque “temos conosco a justiça, o direito, mas nossa força ainda não é suficiente”[96]. Como falamos anteriormente, será o aumento permanente da força social da organização das classes exploradas que poderá proporcionar a transformação social desejada.

Para a construção de uma organização que nos dê os meios de chegar aos fins desejados – revolução social e socialismo libertário – consolidando a vitória, defendemos um modelo de criação e desenvolvimento do que chamamos organização popular.

Primeiramente, justificamos a organização conforme já definimos anteriormente, sendo ela a “coordenação de forças ou ‘a associação com um objetivo comum e com as formas e os meios necessários para atingir este objetivo’”. Já falamos também que a organização multiplica a força social do povo e é somente por meio dela que podemos oferecer uma oposição capaz de derrubar o capitalismo e o Estado. Este modelo de organização que reivindicamos é fruto da livre associação dos membros das classes exploradas.
Pela associação, eles [os trabalhadores] instruem-se, informam-se mutuamente, e põem fim, por seus próprios esforços, a essa fatal ignorância que é uma das principais causas de sua escravidão. Pela associação, eles aprendem a ajudar-se, conhecer-se, apoiar-se um no outro, e acabarão por criar uma força mais formidável do que aquela de todos os capitalistas burgueses e de todos os poderes políticos reunidos.[97]
Em segundo lugar, justificamos esta organização como sendo popular, dando a ela um caráter classista. Ou seja, neste modelo de organização deve estar mobilizado todo o conjunto das classes exploradas, também conforme definido anteriormente. É uma prioridade, portanto, o envolvimento de todos os setores que sofrem de maneira mais dura os impactos do capitalismo. Quando a organização possui um caráter classista isso estimula e dá forças à luta de classes. Desta maneira, a organização popular é construída de baixo para cima, da “periferia para o centro” e fora dos centros de poder do atual sistema.

A organização popular é constituída por meio da vontade de luta do povo. Assim, ela não é fruto de um movimento espontâneo, mesmo sabendo que muitas expressões da luta de classes surgem espontaneamente. Ela é necessária também por não acreditarmos – diferente do que defenderam muitos socialistas no século XIX – que a sociedade capitalista caminha para seu próprio fim, ou que o socialismo é o resultado de uma evolução natural do capitalismo. Já nos parece bastante claro que devemos pensar em um modelo de organização como ferramenta de luta, pois, de outra forma, o capitalismo e o Estado não deixarão de existir.

Entendemos a organização popular como resultado de um processo de convergência de diversas organizações sociais e diferentes movimentos populares, que são fruto da luta de classes. Por este motivo, acreditamos que devemos favorecer todos os tipos de organizações e movimentos desse tipo, entendendo este apoio como conseqüência de nossas idéias mais fundamentais. Estas organizações e movimentos foram chamados no passado de “movimentos de massas”, mas a vertente autoritária do socialismo acabou dando uma conotação ao termo “massa” de “massa de manobra”, de um movimento sem consciência que deveria ser dirigido e guiado por uma vanguarda, que estaria organizada em um partido verticalizado. Ou seja, os autoritários trataram os movimentos de massas a partir de uma perspectiva hierárquica, buscando dominá-los.

Consideramos imprescindível a participação social e popular no processo de transformação social. Os movimentos de massa podem ser chamados de organizações sociais, movimentos populares, mas também de movimentos sociais, termo que utilizaremos daqui para frente.

Um movimento social é uma associação de pessoas e/ou de entidades que possuem interesses comuns na defesa ou na promoção de determinados objetivos frente à sociedade. Estes movimentos podem estar nos mais diferentes lugares da sociedade e ter as mais diferentes bandeiras de luta, que mostram as necessidades daqueles que estão em torno do movimento, uma causa em comum. Como vimos, a sociedade de hoje proporciona à maior parcela da sociedade uma situação de sofrimento e de privações e isso serve, muitas vezes, como fator de associação, que dá corpo às organizações de defesa dos interesses do povo.
Por meio das organizações fundadas para a defesa de seus interesses, os trabalhadores adquirem a consciência da opressão em que se encontram e do antagonismo que os divide dos patrões [ou da classe dominante] começam a desejar uma vida melhor, habituam-se à luta coletiva e à solidariedade e podem chegar a conquistar aquelas melhorias que são compatíveis com a persistência do regime capitalista e estatal.[98]
Os movimentos sociais são fruto de um tripé composto pela necessidade, vontade e organização. Este tripé motiva a criação de diversos movimentos sociais por todo mundo; e no Brasil, isso não é diferente. Há aqui movimentos de sem-terra, sem-teto, desempregados, comunitários, pela qualidade e melhor preço dos transportes. Há movimentos de catadores de lixo reciclável, indígenas, estudantis, de direitos humanos, sindicais, feministas, negros, gays, de conselhos populares, artísticos, culturais, ambientalistas, entre tantos outros. Estes movimentos têm em comum o fato de surgirem a partir da dominação e da exploração da sociedade em que vivemos, sendo, muitos deles, fruto da luta de classes.

No entanto, não são muitos os movimentos sociais que buscam construir a organização popular ou mesmo combater o capitalismo e o Estado. Muitos deles estão imbuídos de características e valores da sociedade capitalista e, mais do que isso, muitas vezes estão propagando estas características e estes valores. A maior parte desses movimentos, que poderíamos chamar reformistas, acredita que há solução para suas questões dentro do capitalismo. Ou seja, o fim de grande parte destes movimentos é a obtenção dos ganhos de curto prazo, dentro do capitalismo, e nada mais. Além disso, na maioria dos casos, os movimentos sociais não estão devidamente articulados entre si e realizam cada um a sua luta, sem articulação entre elas. Portanto, não apontam nem para um início de construção da organização popular. Isso mostra que, apesar de haver uma série de movimentos sociais, o fato é que as características e formas de atuação destes movimentos não estão, na sua grande maioria, em acordo com aquilo que pensamos ser apropriado. Os meios que vêm escolhendo não conduzem aos fins defendidos por nós.

Os movimentos sociais que defendemos, e que pensamos estarem contribuindo com nosso projeto político, possuem certas características e formas de atuação.

Eles são os mais fortes possível, com o maior número de pessoas e boa organização, estando voltados para a luta que elegeram como prioritária. Então, um movimento de sem-terra deve abarcar todos aqueles que estão dispostos a lutar pela terra, um movimento de sem-teto deve abarcar todos os que estão dispostos a lutar pela moradia e assim por diante. Assim, acreditamos que os movimentos sociais não devem caber e encerrar-se dentro de uma ideologia, seja ela qual for. Não acreditamos em movimentos sociais anarquistas, marxistas, social-democratas ou de qualquer outra ideologia específica. Portanto, nos movimentos sociais que nos dispomos a criar ou a desenvolver devem “caber” pessoas das mais diferentes ideologias. Para nós, um movimento social anarquista, ou de qualquer outra ideologia, só tenderia a cindir a classe dos explorados, ou mesmo aqueles que estão interessados em lutar por uma determinada causa. Ou seja, é a necessidade, e não a ideologia, a força que deve impulsionar a criação e o desenvolvimento dos movimentos sociais. Assim “nenhuma teoria filosófica ou política deve entrar, como fundamento essencial, e como condição oficial obrigatória no programa [...]. Mas isso não implica que não possam e não devam ser livremente discutidas [...] todas as questões políticas e filosóficas.”[99]

Apesar de acreditamos que os movimentos sociais não devem caber dentro do anarquismo, pensamos que o anarquismo deve ser, o máximo possível, difundido dentro dos movimentos sociais. Mais à frente, discutiremos como isso deve ser feito e com que objetivo. Por ora, basta dizer que os movimentos sociais que defendemos não são e nem devem ser anarquistas, mas sim, terreno fértil ao anarquismo.

Da mesma forma pensamos ser a questão da religião. Apesar de, no nível político, termos posições anticlericais, pensamos que no nível social não se deve insistir com esta questão, impedindo de lutar os membros das classes exploradas que tenham crenças religiosas. Nas classes exploradas, muitos possuem crenças religiosas e há como trabalhar esta questão dentro dos movimentos, sem impedir estas pessoas de lutar. Há muitos grupos religiosos progressistas nos movimentos sociais, que fazem parte do amplo campo da esquerda e com os quais há possibilidade de trabalho. Os movimentos sociais “devem buscar uma base comum, uma série de princípios simples sobre os quais todos os trabalhadores, quaisquer que sejam [suas opções políticas e religiosas], sendo ao menos trabalhadores sérios, ou seja, homens duramente explorados e sofridos, estão e devem estar de acordo”[100].

Outra característica importante aos movimentos sociais é a autonomia, que se dá fundamentalmente na relação com o Estado, os partidos políticos, os sindicatos burocratizados, a Igreja, entre outros. Os movimentos sociais têm de tomar decisões e agir por conta própria, tratando de seus próprios assuntos, independente de organismos que exerçam, ou busquem exercer, domínio sobre eles. Portanto, aqueles que desejam chefiar, mandar ou fazer com que os movimentos sociais sirvam aos seus próprios fins não devem ter influência sobre eles, já que não lutam pelo bem coletivo dos movimentos, mas utilizam a máxima de que servir a si mesmo é a melhor forma de servir aos outros.

Os movimentos sociais não devem estar ligados a políticos ou a qualquer setor do Estado, pois sabemos que estes, quando se aproximam querendo ajudar, na imensa maioria dos casos estão procurando “base” para seus interesses político-partidários, ou visando acalmar os movimentos, estabelecendo interlocuções deles com a institucionalidade do Estado. Conhecendo bem a concepção autoritária dos partidos, sabemos que seu interesse é sempre aparelhar os movimentos sociais, sejam estes partidos reformistas ou revolucionários. No primeiro caso, participam das eleições, e vêem nos movimentos sociais uma fonte de votos. No segundo, procuram um “movimento de massa” que sirva de base, para a vanguarda que desejam ser. Neste caso, os partidos políticos querem chefiar e mandar nos movimentos sociais, achando-se superiores a eles, e julgando ser os iluminados que trarão consciência às classes exploradas. Muitas vezes seus membros são intelectuais que querem saber, melhor do que o próprio povo, o que é melhor para ele. Outros organismos que buscam aparelhar, como sindicatos burocráticos e Igrejas, também não ajudam os movimentos sociais.
Toda essa gente deve ser afastada do movimento social, pois não defendem os interesses do movimento social, mas seus próprios interesses. O movimento social não precisa de chefes, de dirigentes ou de gente que queira usá-lo. O movimento social precisa de gente que queira apoiá-lo e lutar junto com ele, mas não lutar por ele, no seu lugar. Lugar que é legitimado pela necessidade de sobrevivência e pela dignidade que possuem as causas que promovem a verdadeira solidariedade.[101]
O que os movimentos sociais precisam é de pessoas que querem apoiá-lo, independente de suas origens de classe, por considerarem justa sua luta. Não há qualquer problema em pessoas que apóiam os movimentos sociais não estarem nas condições exatas dos outros militantes. Assim, consideramos justo que pessoas empregadas apóiem a luta dos trabalhadores desempregados, que pessoas que possuem moradia apóiem a luta dos sem-teto, e assim por diante. Mesmo os membros oriundos das classes médias podem, e inclusive devem, se são pessoas éticas, aproximar-se dos setores mais explorados do povo e oferecer seu apoio. Esta solidariedade deve ser sempre bem recebida, já que é importante para os movimentos sociais. Um dever ético, como colocou Kropotkin, ao incitar a luta dos membros das classes médias ao lado do povo. Dizia ele:
[...] vós todos que possuís conhecimentos, talentos, se tendes coração, vinde, pois, vós e vossos companheiros, colocá-los a serviço daqueles que mais precisam. E sabei que se vierdes, não como senhores, mas como camaradas de luta; não para governar, mas para inspirar-vos em um novo meio; menos para ensinar do que para conceber as aspirações das massas, adivinhá-las e formulá-las, e depois trabalhar, sem descanso, continuamente, [...] para fazê-los entrar na vida – sabei que então, mas só então, vivereis uma vida completa.[102]
Esta candidatura de apoio aos movimentos sociais deve estar condicionada às atitudes daqueles que pretendem atuar nesta situação. Tanto os apoios, quanto os militantes que são organicamente legitimados, devem demonstrar que estão muito mais dispostos a ouvir do que a falar. Eles devem se inteirar da situação e das circunstâncias daqueles que formam os movimentos sociais e lutar ombro a ombro, crescer com eles e não definir de maneira autoritária e vertical seus caminhos e formas. Neste caso, o apoio ou militante verá que o mais relevante será contrastar sua ideologia com a realidade do grupo e não tentar reduzir o movimento social às suas certezas ideológicas.

Além disso, quando falamos de autonomia devemos ter em mente que a autonomia, para nós, não significa ausência de luta ideológica ou mesmo ausência de organização. Quando se estimula a “não-ideologia”, o espontaneísmo freqüente, quando se renuncia o projeto e o programa revolucionários – muitas vezes chamando isso de autonomia – abrimos espaço e deixamos um terreno livre para a classe dominante, os burocratas e os autoritários que ocuparão estes espaços.

Outra característica importante dos movimentos sociais é sua combatividade. Ao reivindicarmos que devem ser combativos, queremos dizer que os movimentos sociais devem estabelecer suas conquistas impondo sua força social e não depender de favores ou boas ações de quaisquer setores da sociedade, incluindo o Estado. A combatividade também se caracteriza por uma postura de defesa da luta de classes fora do Estado. Como entendemos o Estado como um forte pilar de sustentação do capitalismo, não acreditamos que os movimentos sociais possam exercer sua política dentro dele, sem que isso signifique uma forma de legitimar o capitalismo. A aproximação que os Estados fazem dos movimentos sociais são sempre uma forma de cooptá-los, de fazer um certo “pacto social”, que visa acalmar os ânimos da luta de classes e tem como objetivo garantir a legitimidade do sistema. Independente de os movimentos sociais serem mais ou menos violentos, o fato é que eles devem sempre manter-se combativos, confrontando o capitalismo e o próprio Estado.

Defendemos, também, a ação direta, como forma de ação política que se opõe à democracia representativa. Os movimentos sociais não devem ter por objetivo a confiança em políticos que atuam dentro do Estado, para que representem seus interesses. Sabemos que a máquina do sistema representativo transforma a todos que nela entram, não permitindo – mesmo aos bem intencionados – que os políticos eleitos realizem ações em prol das classes exploradas. Mesmo os políticos “de esquerda” confundem os meios com os fins e mais confundem do que esclarecem os movimentos sociais, não sendo, portanto, o meio mais correto para sua emancipação. A ação direta acontece quando o próprio movimento social
em reação constante contra o meio atual, nada espera dos homens, das potências ou das forças exteriores a ele, mas [...] cria suas próprias condições de luta e retira de si mesmo seus meios de ação. [...] Portanto, a ação direta é a clara e pura concreção do espírito de revolta: materializa a luta de classes que ela faz passar do campo da teoria e da abstração ao campo da prática e da realização. Em conseqüência, a ação direta é a luta de classes vivida no dia-a-dia, é o assalto permanente contra o capitalismo.[103]
Desta maneira, os movimentos sociais não confiam sua ação aos políticos, mas a realizam por conta própria, colocando em prática o mote da AIT, de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A luta por esta emancipação deve ser feita de maneira estratégica, tornando a ação direta mais ou menos violenta, conforme as circunstâncias pedirem. Quando ela precisar ser violenta, deve sempre ser entendida como resposta, como autodefesa em relação ao sistema de dominação e exploração em que vivemos.

A ação direta é a forma de fazer política dos movimentos sociais, sendo que
afirmamos que a política, no sentido que a defendemos, não tem sentido partidário, mas sim sentido de gestão daquilo que é público, de todos. A política que é feita pelo povo, devidamente organizado, decidindo efetivamente sobre tudo o que lhe diz respeito. A política que defendemos é aquela que se coloca hoje como uma luta dos trabalhadores, organizada de baixo para cima, contra a exploração e a opressão de que somos vítimas. É nas mobilizações sociais que enxergamos alguma perspectiva de mudança política significativa na sociedade.[104]
Neste caso, os movimentos sociais não lutam para ter poder no Estado ou em suas instâncias institucionais de poder. Eles estão sempre organizados fora do Estado, defendendo a devolução do poder político ao povo. Assim, acreditamos que o problema não é quem ocupa o Estado, mas o próprio Estado.

E somente desta maneira que entendemos o conceito de poder popular, defendido por outros grupos e organizações. Se por poder popular entendemos a crescente força social das organizações das classes exploradas, que estão inseridas em uma disputa permanente com o capitalismo e com o Estado, então estamos de acordo. No entanto, há aqueles que defendem o poder popular como a sustentação de vanguardas descoladas da base, hierarquia, partidos autoritários, reivindicações do Estado e burocracias de vários tipos. Quando poder popular significa este segundo modelo, então estamos em completo desacordo.

Além da ação direta, como forma de fazer a política, os movimentos sociais, na forma como os entendemos, têm a necessidade, caso se proponham agentes de uma significativa transformação social, de utilizar a democracia direta como método de tomada de decisões. A democracia direta acontece nos movimentos sociais quando todos os que neles estão envolvidos participam efetivamente do processo de tomada de decisões. Com a utilização deste método, as decisões são tomadas de maneira igualitária (todos possuem a mesma voz e o mesmo poder de voto) em assembléias horizontais, onde os assuntos são discutidos e deliberados. Não há pessoas ou grupos que discutem os assuntos e que deliberam fora das assembléias; não há hierarquia ou chefes que mandam em outras pessoas que obedecem.

A democracia direta exercida neste modelo pode-se comparar ao funcionamento do socialismo libertário que explicamos anteriormente. Ou seja, os movimentos sociais se coordenam internamente pelos princípios da autogestão e se articulam, nos casos de necessidade, pelo federalismo. É importante ressaltarmos que atuando desta forma, estamos incorporando em nossos meios de luta, posições defendidas para os fins que desejamos atingir, confirmando a máxima de que “os fins estão nos meios”. As próprias lideranças e funções assumidas são temporárias, rotativas e revogáveis.

Neste modelo de movimento social, há uma importância para a conduta militante com ética e responsabilidade. A ética, que norteia uma conduta militante correta, está embasada em princípios que se opõem ao capitalismo e ao Estado e que sustentam a cooperação, a solidariedade e o apoio mútuo. Ela ainda norteia o comportamento militante que atua sem prejuízos para com os outros, que estimula o apoio, não permitindo as posturas que visam a cisão ou a disputa interna desleal. A responsabilidade, princípio que se opõe aos valores do capitalismo, estimula que os militantes dos movimentos sociais tenham iniciativa, que assumam responsabilidades e as cumpram – isso evitará que poucos fiquem sobrecarregados com as muitas tarefas –, que tenham atitudes condizentes com o espírito de luta e que contribuam da melhor forma com os movimentos sociais.

A solidariedade e o apoio mútuo também são princípios que devem ser estimulados nos movimentos sociais. Em oposição ao individualismo do capitalismo, a união das classes exploradas para combate ao capitalismo e ao Estado deve ser estimulada. Ao sair do isolamento e buscar associar-se, juntando-se a outras pessoas que querem construir um mundo mais justo e igualitário, as pessoas constroem a solidariedade de classe. Esta se dá na associação de uma pessoa com outra para formar um movimento social ou mesmo de um movimento social com outro, na busca da construção da organização popular e da superação do capitalismo e do Estado. Neste caso, os limites do Estado não devem ser reconhecidos, pois os movimentos sociais têm de se solidarizar pelos interesses de classe, e não dos interesses nacionais. Quando são pautados pelos interesses de classe, os movimentos sociais são internacionalistas.

Também, os movimentos sociais constituem um espaço privilegiado para o desenvolvimento de cultura e educação popular. É a cultura, como forma de ser e de viver das classes exploradas, que dará corpo à educação popular. Todos que estão mobilizados desenvolvem seu aprendizado e as novas formas, manifestações, linguagens, experiências e vivências traduzem o espírito da luta. Como não há um saber acabado, é o processo de troca entre os militantes que permite esta educação, em que não há um professor e um aluno; todos são professores e alunos. Todos aprendem e todos ensinam. Assim se dá a construção de uma educação que respeita a cultura popular e capacita os militantes a partir dos diálogos, dos debates, das trocas de experiências. Neste processo, é possível contrapor os valores do capitalismo que são transmitidos, todos os dias, pelos meios de comunicação, pelas escolas e outras vias de reprodução.

Além disso, a própria “ginástica revolucionária” proporcionada pelas experiências de luta, ao mesmo tempo em que trará conquistas de curto prazo, será responsável por auxiliar este processo de educação, contribuindo com as experiências práticas de busca da liberdade, por meio da própria liberdade.

As conquistas de curto prazo, chamadas reformas, quando conquistadas pelos movimentos sociais, servirão como maneiras de diminuir o sofrimento daqueles que lutam e ao mesmo tempo os ensinará as lições da organização e da luta. Entendemos, assim, que “tomaremos ou conquistaremos as eventuais reformas no mesmo espírito daquele que arranca pouco a pouco do inimigo o terreno que ele ocupa, para avançar cada vez mais”[105]. E julgamos que ao lutar pelas reformas, os movimentos sociais não se tornam reformistas – que são aqueles que entendem as reformas como um fim. Mesmo com a luta pelas reformas, eles podem sustentar uma prática revolucionária, e ser contra o reformismo, visto que “se somos contra o reformismo, não é porque as melhorias parciais não nos interessam, mas porque acreditamos que o reformismo é um obstáculo não somente à revolução, mas até mesmo às reformas”[106].

Esta afirmação abre espaço para uma outra característica que julgamos fundamental nos movimentos sociais: a perspectiva revolucionária de longo prazo. Neste caso, a idéia é que os movimentos sociais, além de terem suas bandeiras específicas (terra, moradia, trabalho etc.) possam ter como objetivos a revolução e a construção de uma nova sociedade. Entendemos que as lutas de curto e médio prazo são complementares com esta perspectiva de longo prazo e não excludentes. Com a perspectiva de longo prazo, os movimentos têm maior poder de conquista, visto que quanto mais longínquo os objetivos, maiores são as conquistas, não sendo as primeiras conquistas o fim da luta. Muitos movimentos sociais que não possuem perspectiva de longo prazo, ao terem suas reivindicações atendidas (terra para os sem-terra, moradia para os sem-teto, trabalho para os desempregados etc.) acham que isso é o fim da linha. Para nós, este é somente o primeiro passo e, mesmo que conquistado, deve estimular outras lutas e mobilizações em torno de outros problemas que acometem nossa sociedade. É esta perspectiva que também proporciona uma visão crítica dos movimentos sociais em relação ao capitalismo e ao Estado, deixando-os alertas para as tentativas de conciliação de classe e cooptação. Esta perspectiva também estimula a solidariedade e o apoio mútuo, visto que as classes exploradas não se vêem mais fragmentadas, mas como parte de um todo que luta por uma nova sociedade. Assim, os movimentos sociais defendem uma perspectiva de longo prazo que é revolucionária,
no sentido que quer substituir uma sociedade fundada na iniqüidade, na exploração da imensa maioria dos homens por uma minoria opressiva, no privilégio, no ócio, e em uma autoridade protetora de todas essas belas coisas, por uma sociedade fundada nessa justiça igual para todos e na liberdade de todos. [...] Quer, em resumo, uma organização econômica, política e social, na qual todo ser humano, sem prejuízos para suas particularidades naturais e individuais, encontra uma igual possibilidade de desenvolver-se, instruir-se, pensar, trabalhar, agir e desfrutar a vida como homem.[107]
Um outro ponto importante que deve ser mencionado é o fato de os movimentos sociais serem, muitas vezes, fruto de ações e mobilizações espontâneas das classes exploradas. Este fato para nós é natural e entendemos sempre ter de conviver com ele. Em situações extremas, setores da população se revoltarão ou se mobilizarão por diversos motivos: para denunciar uma injustiça, para responder a um ataque do sistema, para conseguir o que comer, um lugar para morar etc. Se por um lado defendemos a organização, acreditamos, por outro, que devemos sempre apoiar estes momentos de mobilização popular espontânea. Os objetivos organizacionais devem ir se dando no meio da luta. Não devemos, portanto, questionar o espontaneísmo quando ele assim acontece, mas sim, implicados nas lutas, tentar catalizar as forças para que se chegue ao grau necessário de organização. A interação desta dinâmica própria dos movimentos sociais, que naturalmente contém grande grau de espontaneidade, com os contextos sociais que variam (repressão, legislação, mudanças de forças políticas em jogo etc.) fará com que os movimentos sociais tenham, naturalmente, fluxos e refluxos. Haverá momentos em que as circunstâncias proporcionarão uma realidade de lutas mais radicalizadas e permanentes. Em outras, proporcionarão contextos de dificuldade para articulação, desmotivação, medo etc. Ou seja, é natural que existam contextos de fluxos e refluxos.
Em certas épocas, que são geralmente as precursoras dos grandes acontecimentos históricos, dos grandes triunfos da humanidade, tudo parece avançar num passo acelerado, tudo respira força: as inteligências, os corações, as vontades, tudo vai em uníssono, tudo parece ir à conquista de novos horizontes. Então, estabelece-se em toda a sociedade, como uma corrente elétrica que une os indivíduos mais afastados num mesmo sentimento e as inteligências mais díspares num mesmo pensamento que imprime a todos a mesma vontade. [...] Mas há outras épocas sombrias, desesperantes, fatais, onde tudo respira a decadência, a prostração e a morte, e que manifestam um verdadeiro eclipse da consciência pública e privada. São os refluxos que segue sempre as grandes catástrofes históricas.[108]
Pensamos ser nossa obrigação avaliar corretamente o contexto e atuar de maneira conforme. Nos momentos em que o contexto apontar um fluxo, devemos atacar, atuando com toda a força e proporcionando toda a organização necessária. Nos momentos em que o contexto apontar um refluxo, devemos saber conviver com os problemas, “manter a chama acesa”, e aguardar os momentos certos para voltar a nos mobilizar.

Enfim, nossa concepção é que devemos romper o isolamento dos indivíduos criando e estimulando o desenvolvimento dos movimentos sociais com as características aqui colocadas. Esta é uma primeira etapa de nossa estratégia permanente. Depois disso, em uma segunda etapa, entendemos ser necessária a articulação de vários movimentos sociais para a constituição do que estamos chamando em todo o texto de organização popular, sendo ela a confluência dos movimentos sociais em combate permanente ao capitalismo e ao Estado.

Buscando aumentar permanentemente a força social da organização popular e com sua radicalização, entendemos ser possível chegar à revolução social e assim constituir o socialismo libertário. Neste processo de transformação social, entendemos que as classes exploradas possuem um papel imprescindível; “esta massa, [...] sem a forte ajuda da qual o triunfo da revolução nunca será possível”[109].
Notas:

95. Mikhail Bakunin. "Necessidades da Organização". In: Conceito de Liberdade, p. 136.

96. Idem. A Dupla Greve de Genebra. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2007, p. 94.

97. Ibidem. p. 90.

98. Errico Malatesta. "Los Anarquistas y los Movimientos Obreros". Excerto de Il Risveglio 1-15 out. 1927. In: Vernon Richards. Op. Cit. p. 111.

99. Mikhail Bakunin. "Unidade e Programa das Forças Revolucionárias...". In: Conceito de Liberdade, p. 163.

100. Idem. "La Política de la Internacional". In: In: Frank Mintz (org.). Bakunin: crítica y acción, p. 85. Apesar de ser um crítico feroz das questões clericais, Bakunin sustentava que mesmo os trabalhadores religiosos deveriam integrar o movimento operário. Pensamos, como ele, que a religião não deve dividir os movimentos sociais. Sobre a crítica de Bakunin a Deus e à religião ver: Mikhail Bakunin. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000 e Mikhail Bakunin. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo.

101. Universidade Popular. Capitalismo, Anticapitalismo e Organização Popular. Rio de Janeiro: UP/MTD-RJ (no prelo).

102. Piotr Kropotkin. "Aos Jovens". In: Palavras de um Revoltado, p. 67.

103. Emile Pouget. L’Action Directe.

104. FARJ. "A Política não é para os Políticos". In: Libera 136. Rio de Janeiro, 2006.

105. Errico Malatesta. "Anarquismo e Reforma". In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas, p. 146.

106. Idem. "Quanto Pior Estiver, Melhor Será". In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas, p. 67.

107. Mikhail Bakunin. A Dupla Greve de Genebra, pp. 92-93.

108. Idem. "Algumas Condições da Revolução". In: Conceito de Liberdade, pp. 128-129.

109. Idem. "Educação Militante". In: Conceito de Liberdade, p. 147.


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