O anarquismo, para nós, é uma ideologia, sendo esta um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação – o que chamamos de prática política.
[...] porque o anarquismo é uma ideologia
que se recusa a criar novos sistemas centrais
com novas áreas periféricas.
Rudolf de Jong
O anarquismo, para nós, é uma ideologia, sendo esta um conjunto de idéias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação – o que chamamos de prática política. A ideologia exige a formulação de objetivos finalistas (de longo prazo, das perspectivas de futuro), a interpretação da realidade em que se vive e um prognóstico, mais ou menos aproximado, sobre a transformação desta realidade. A partir desta análise, a ideologia não é um conjunto de idéias e valores abstratos, dissociados da prática, com um caráter puramente reflexivo, mas, sim, um sistema de conceitos que existe, na medida em que é concebido junto à prática e está voltado a ela. Assim, a ideologia exige uma atuação voluntarista e consciente com o objetivo de imprimir à sociedade a transformação social desejada.
Entendemos o anarquismo como uma ideologia que fornece orientação para a ação no sentido de substituir o capitalismo, o Estado e suas instituições, pelo socialismo libertário – sistema baseado na autogestão e no federalismo –, sem quaisquer pretensões científicas ou proféticas.
Como outras ideologias, o anarquismo possui história e contexto específicos. Ele não nasce de intelectuais ou pensadores alheios à prática, que buscam apenas a reflexão abstrata. O anarquismo tem sua história desenvolvida no seio das grandes lutas de classe do século XIX, quando foi teorizado por Proudhon, e tomou corpo em meio à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), com a atuação de Bakunin, Guillaume, Reclus e outros que defendiam o socialismo revolucionário, em oposição ao socialismo reformista, legalista ou estatista. Esta tendência da AIT foi futuramente conhecida por “federalista” ou “antiautoritária” e teve sua continuidade na militância de Kropotkin, Malatesta e outros.
Portanto, foi no seio da AIT que o anarquismo tomou corpo, “na luta direta dos trabalhadores contra o capitalismo, pelas necessidades dos trabalhadores, por suas aspirações à liberdade e à igualdade, que vivem particularmente nas massas de trabalhadores nas épocas mais heróicas”[1]. O trabalho de teorização do anarquismo foi realizado por pensadores e trabalhadores que estavam diretamente envolvidos com as lutas sociais e que auxiliaram a formalizar e difundir este sentimento que estava latente naquilo que se chamou “movimento de massas”. Desta forma,
o anarquismo na sua gênese, nas suas aspirações, em seus métodos de luta, não tem nenhum vínculo com qualquer sistema filosófico. O anarquismo nasceu da rebelião moral contra as injustiças sociais. Quando apareceram homens que se sentiram sufocados pelo ambiente social em que estavam forçados a viver, e cuja sensibilidade se viu ofendida pela dor dos demais como se ela fosse a sua própria, e quando estes homens se convenceram de que boa parte da dor humana não é conseqüência fatal de leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas deriva, por outro lado, de feitos sociais dependentes da vontade humana e elimináveis por obra do homem, abriu-se então a via que deveria conduzir ao anarquismo.[2]Com o passar dos anos, o anarquismo desenvolveu-se teorica e praticamente. Por um lado, contribuiu de maneira ímpar com episódios de transformação social, conservando seu caráter ideológico, como, por exemplo, na Revolução Mexicana, na Revolução Russa, na Revolução Espanhola, ou mesmo em episódios brasileiros, como na Greve Geral de 1917 e na Insurreição de 1918. Por outro lado, em determinados contextos o anarquismo assumiu certas características que lhe retiraram este caráter ideológico, transformando-o em um conceito abstrato, que passou a constituir-se tão somente em uma forma de observação crítica da sociedade. Com o passar dos anos, este modelo de anarquismo assumiu uma identidade própria, encontrando referências na história e, ao mesmo tempo, perdendo seu caráter de luta pela transformação social. Isso se evidenciou, de maneira mais gritante, na segunda metade do século XX. Pensado a partir dessa perspectiva, o anarquismo deixa de ser uma ferramenta aos explorados na sua luta pela emancipação e funciona como um passatempo, uma curiosidade, um tema para debate intelectual, um nicho acadêmico, uma identidade, um grupo de amigos etc. Para nós, esta visão ameaça fortemente o próprio sentido do anarquismo.
A menos que eu esteja gravemente errado – e eu espero estar – os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo estão sofrendo um desgaste de longo alcance a um ponto em que a palavra anarquia tornar-se-á parte do vocabulário elegante burguês do próximo século – desobediente, rebelde, despreocupado, mas deliciosamente inofensivo.[4]Defendemos que o anarquismo retome o seu caráter original de ideologia, ou como definimos anteriormente, de um “sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação, [...] de prática política”. Buscando retomar esta caráter ideológico do anarquismo e para nos diferenciar das demais correntes que estão no amplo campo no anarquismo contemporâneo, reivindicamos o anarquismo social, pois corroboramos as críticas de Malatesta, Fabbri e afirmamos a dicotomia identificada por Bookchin, de que há hoje um anarquismo social, voltado às lutas e com um objetivo de transformação social, e um anarquismo de estilo de vida, que renunciou à proposta de transformação social e de envolvimento nas lutas sociais de nosso tempo.
o anarquismo social está radicalmente em desacordo com o anarquismo que é focado no estilo de vida, a invocação neo-situacionista ao êxtase e a soberania do ego pequeno burguês que cada vez contrai-se mais. Os dois divergem completamente em seus princípios de definição – socialismo ou individualismo.[5]Frank Mintz, outro militante e pensador contemporâneo, ao comentar o título de seu livro Anarquismo Social enfatizou: “este título deveria ser inútil, pois os dois termos estão implicitamente ligados. É do mesmo modo equivocado porque sugere que pode existir um anarquismo não-social, fora das lutas.”[6] Desta maneira, entendemos que o anarquismo social está necessariamente implicado na luta de classes.
a. Culturas e sociedades completamente estranhas e distantes do centro, de maneira nenhuma “integradas”, e que são “selvagens” aos olhos do centro. Por exemplo, os índios do Amazonas.Aceitando esta classificação, e conscientes de suas limitações, definimos o conjunto das classes exploradas como as áreas periféricas que estão dominadas por um centro. É importante ressaltar que não consideramos parte deste conjunto das classes exploradas indivíduos que estejam, em teoria, em áreas periféricas, mas que, na prática, estabeleçam relações de domínio sobre outros, constituindo-se em novos centros. Daí a necessidade de todas as lutas das classes exploradas terem uma perspectiva revolucionária, para que não busquem, simplesmente, fazer com que partes das áreas periféricas constituam-se em novos centros.
b. Áreas periféricas relacionadas ao centro e pertencendo a estruturas políticas e socioeconômicas que tentam, ao mesmo tempo, manter suas identidades. São dominadas pelo centro, ameaçadas em sua existência pela expansão econômica deste. Pelos padrões do centro são “atrasadas” e subdesenvolvidas. Por exemplo, as comunidades indígenas do México e dos países andinos. Outros exemplos nesta categoria – talvez devêssemos falar em um subgrupo b.1 – são pequenos produtores, trabalhadores especializados e camponeses ameaçados em sua existência econômica e social pelo progresso do centro e que ainda lutam por sua independência.
c. Classes econômicas ou mesmo sistemas socioeconômicos que costumavam pertencer a um centro, mas que voltaram a uma posição periférica após inovações tecnológicas e desenvolvimentos socioeconômicos no centro. Por exemplo, o lumpemproletariado, trabalhadores informais precarizados e o exército permanente de pessoas desempregadas.
d. Classes sociais e grupos que fazem parte de um centro num sentido econômico, mas que são periféricos num sentido social, cultural e/ou político: as classes trabalhadoras, o proletariado em sociedades industriais emergentes, as mulheres, os negros, os homossexuais.
e. Relações centro-periféricas de natureza política, seja entre Estados ou dentro deles: relações coloniais ou imperialistas, relações capital versus província etc. Tais relações no sistema capitalista desenvolvem-se paralelamente às relações econômicas mencionadas acima – ou, grupo e.1: dominação neocapitalista, colonização interna e exploração.
A concepção anarquista das forças sociais por trás da mudança social é muito mais geral [...] que a fórmula marxista. Diferentemente do marxismo, não concede um papel específico ao proletariado industrial. Nos escritos anarquistas encontramos todos os tipos de trabalhadores e de pobres, todos os oprimidos, todos aqueles que de algum modo pertencem a grupos ou áreas periféricas e, portanto são fatores potenciais na luta revolucionária pela mudança social.[11]Com esta concepção das forças revolucionárias, afirmamos que “ao que tudo indica, é na periferia, nas ‘margens’, que a revolução mantém acesa sua chama”[12]. Portanto, nossa conclusão é que o anarquismo deve estar em permanente contato com as periferias para a busca de seu projeto de transformação social.